domingo, 26 de abril de 2020

[As danações de Carina] Cotidiano

Carina Bratt

Manuelito, meu vizinho, tem uma série de tiques estranhos. O mais usual, é o de mastigar gelo e chupar um velho cabo de vassoura, e, dele, não se desgrudar para onde quer que vá, ou esteja. O que considero fora do normal, para um rapaz de vinte anos, é o de se contorcer todo, para comer as unhas dos próprios pés. Acho tal atitude, o cúmulo do absurdo. Carlito, o irmão dois anos mais novo, não fica atrás. Adora tirar meleca do nariz e limpar na roupa dos amigos.

Diferente de Joselito, o caçula. Joselito acabou de completar quinze.  Adora cuspir à distância. Faz isso o tempo todo. Chega a dar nojo. Aliás, por causa de tamanha idiotice, se sagrou campeão nessa modalidade. Em que lugar? Na escola, onde estuda. Ninguém consegue ganhar dele. É o terceiro ano que leva o troféu “Cuspidor Inveterado”, uma vez que nenhum outro ultrapassou a sua marca de cinco metros e dez. Voltando ao Manuelito, começou a namorar recentemente.

Dos males, o “mais grave”.  Como assim, o mais grave? A garota dele, a Catulipa Xororó, mesma idade, não difere muito em matéria de disparates e insipiências. Os dois quando se encontram, passam horas mastigando gelo e chupando o pau do cabo de vassoura. Ainda bem, cada um tem o seu. Até chegaram a disputar. O certame aconteceu semana retrasada, em frente ao portão da casa de Manuelito, ou seja, a contenda visava ver quem conseguiria mastigar e engolir o maior número de pedras de gelo e chupar, sem parar, o cabo de vassoura. Coitado dos respectivos cabos! Estipularam condições. Se a vencedora fosse ela Catulipa Xororó, ele Manuelito, daria um montão de beijos nas axilas da sua doce amada.

Todavia, se o campeão fosse ele, Manuelito pularia nos pés de sua cara metade e comeria todas as unhas de seus pisantes. Nesse domigo que passou, aconteceu de novo e ele levou a melhor. Não deu outra: Manuelito mandou brasa nas unhas da Catulipa Xororó e o melhor da festa, sem precisar se deformar para levar as partes inferiores das pernas da beldade, até à altura da boca. Parece que ele fará um curso de podólogo por correspondência.

Voltando ao menino Carlito, dia desses, se deu mal. Após tirar uma suculenta meleca resolveu se livrar da gosmenta  limpando o dedo na camisa de um sujeito que brincava de ficar vesgo dos olhos na pracinha para arrumar uns trocadinhos. Pego de surpresa, no flagra, levou um safanão no meio da fuça. Por minutos, Carlito rodou bailando sobre si mesmo, numa pirueta desordenada, como passos de um bêbado que ingeriu todas.  Relatou depois, aos amigos, ter visto um turbilhão de pequenas estrelinhas multicoloridas girando intermitentemente dentro de seus olhos.

Manuelito jura por tudo quanto é mais sagrado pretende se livrar dessa coisa chata de ficar o tempo todo mastigando pedras de gelo. Os reflexos dessa brincadeira vêm lhe causando um pigarro irritante na garganta, um troço que dura o dia inteiro e, à noite, à noite, quando está dormindo, dana a ranger os dentes.  A Catulipa Xororó, sabe-se lá por qual, ou quais motivos, passou a sofrer de uma alergia medonha, possivelmente oriunda de alguma coisa em desacordo com seu organismo, uma divergência que ainda não descobriu exatamente o que possa ser.

Por conta desse incômodo, não consegue parar de espirrar. Dia desses, na missa onde canta no coral da igreja, num desses esguichares involuntários e arroubados, seu nariz, vejam que coisa, foi parar no rosto do padre Francisco, vigário da paróquia local. Ambos, Manuelito e Catulita Xororó pensam em pôr um fim definitivo nessa história do gelo e cabo de vassoura. Segundo ela, é mais cômodo mastigar os lápis ou as tampas das canetas dos colegas, só para deixá-los furiosos.

Carlito, depois da bordoada parou com a história de limpar meleca na camisa dos outros e resolveu vender amendoins torradinhos em frente ao terminal rodoviário. Joselito descambou por outros caminhos. Além de cuspir à distância, aprendeu a fazer truques de magia com a turminha do Borel, um gueto periférico do outro lado da cidade.

Tem dado certo. Contudo, na última tentativa (realizada dentro de casa), sumiu com a carteira de dinheiro de seu pai e, de roldão, com a bolsa da mãe. Em razão disso, todas as contas do pardieiro onde moram, venceram, inclusive o aluguel. O senhorio do “muquifo”, seu Nicanor “Mão de Vaca”, encurralou os pais dos três irmãos ontem à noite, quando o casal chegava do serviço.

Munido de sangue nas ventas, e palavreados indecentes, deu o seguinte recado: “Ou vocês pagam o aluguel vencido, ou botarei todo mundo no meio aqui da rua, com as quinquilharias nos costados”. Amigas, pelo jeito a coisa não terminará bem. O prazo da família termina na terça-feira.
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo, 26-4-2020    

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