Carina Bratt
Tudo aconteceu exatamente
assim. O corpo estava inerte e se fazia muito longe. O que ainda poderia ser
tentado se resumia em lhe fomentar ânsias de não estar preso.
Zoom, aproximou a janela: um
pássaro tentou uma arremetida e, desarvorado desabou o mundo de cabeça para
baixo. O âmbito se carregou de inundar tudo com um cheiro fétido, no silêncio
que se seguiu.
Ela decidiu que se fazia
chegada a hora da liberdade. Diante do
espelho do armário embutido, calçou as luvas de lã e se disfarçou com uma alma
nova, que havia guardado especialmente para uma ocasião como esta.
Tanto tempo enclausurada e, no
entanto – se admirou -, nenhum cupim, nenhum roído, nada de memória. Saiu de
casa pensando animosamente nas coisas que a reencontrariam. Sorriria, caso a
reconhecessem.
“Não”, disse para si mesma. “É
cedo ainda. Sendo assim, devem estar todos dormindo”. Se enganou como durante
sempre. No instante em que pisou a rua, reparou na chuva.
Amedrontada, voltou sobre seus
próprios passos, para não se perder, denunciar, fechou a porta e se esqueceu em
definitivo de onde pôs a chave.
Não queria mais sair.
Pretendia raiz. O cheiro acre se assemelhava a de um enterro e persistia
incrustado no ambiente.
Súbito, feito uma evidência de
traição, um raio de sol varou as copas dos edifícios em frente e lhe sublinhou
no olhar um rasgo de serena idade.
Ela continuou, ainda assim,
radicada em seu canto, à espera de algo que a comovesse, até que a tarde,
abdicando da luz, abortou uma noite gélida, quase tátil, que permaneceu boiando
no ar com sua lua e uma prole numerosa de estrelas.
Ela se levantou, enfastiada, e
tomou banho. Se esfregou com força, buscando arrancar da pele o cheiro do dia,
até aquele instante presente. Estarrecida com a resistência que encontrou, se
deixou ficar na banheira, enquanto a alma nova, esta sim, fina e emancipada
fugia pelo ralo.
Quando se deu conta de que
precisaria de outra alma, ainda sentia o Odor, mais forte. Impotente, se
enxugou com pressa e correu, nua, para a cama. O aroma a perseguiu. Trancou
portas e janelas esperando detê-lo, mas ele já estava em todos os lugares
múltiplo e insistente.
Uma mosca chata, em voo obeso
e cego, riscou na atmosfera floreios e enfeites incompreensíveis. O enterro
passou dentro do quarto, as pessoas usando suas máscaras de não-caras e seus
espíritos fúnebres.
Ela não se mexeu de seu lugar,
enquanto se desenrolavam lágrimas de desespero dos não-olhos das carpideiras.
Depois, caminhou até a porta de acesso à varanda, tornando a abri-la.
A noite escura adentrou numa
lufada. Ela se livrou da pele e, ignorando o bálsamo que se desprendeu, se
arremessou para fora, se arremeteu como um Ícaro bêbado, tentando... Tentando
um looping.
Título e Texto: Carina
Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 5-4-2020
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