domingo, 5 de abril de 2020

[As danações de Carina] Transitório

Carina Bratt

Tudo aconteceu exatamente assim. O corpo estava inerte e se fazia muito longe. O que ainda poderia ser tentado se resumia em lhe fomentar ânsias de não estar preso.

Zoom, aproximou a janela: um pássaro tentou uma arremetida e, desarvorado desabou o mundo de cabeça para baixo. O âmbito se carregou de inundar tudo com um cheiro fétido, no silêncio que se seguiu.

Ela decidiu que se fazia chegada a hora da liberdade.  Diante do espelho do armário embutido, calçou as luvas de lã e se disfarçou com uma alma nova, que havia guardado especialmente para uma ocasião como esta.

Tanto tempo enclausurada e, no entanto – se admirou -, nenhum cupim, nenhum roído, nada de memória. Saiu de casa pensando animosamente nas coisas que a reencontrariam. Sorriria, caso a reconhecessem.

“Não”, disse para si mesma. “É cedo ainda. Sendo assim, devem estar todos dormindo”. Se enganou como durante sempre. No instante em que pisou a rua, reparou na chuva.


Amedrontada, voltou sobre seus próprios passos, para não se perder, denunciar, fechou a porta e se esqueceu em definitivo de onde pôs a chave.

Não queria mais sair. Pretendia raiz. O cheiro acre se assemelhava a de um enterro e persistia incrustado no ambiente.

Súbito, feito uma evidência de traição, um raio de sol varou as copas dos edifícios em frente e lhe sublinhou no olhar um rasgo de serena idade.

Ela continuou, ainda assim, radicada em seu canto, à espera de algo que a comovesse, até que a tarde, abdicando da luz, abortou uma noite gélida, quase tátil, que permaneceu boiando no ar com sua lua e uma prole numerosa de estrelas.

Ela se levantou, enfastiada, e tomou banho. Se esfregou com força, buscando arrancar da pele o cheiro do dia, até aquele instante presente. Estarrecida com a resistência que encontrou, se deixou ficar na banheira, enquanto a alma nova, esta sim, fina e emancipada fugia pelo ralo.

Quando se deu conta de que precisaria de outra alma, ainda sentia o Odor, mais forte. Impotente, se enxugou com pressa e correu, nua, para a cama. O aroma a perseguiu. Trancou portas e janelas esperando detê-lo, mas ele já estava em todos os lugares múltiplo e insistente.

Uma mosca chata, em voo obeso e cego, riscou na atmosfera floreios e enfeites incompreensíveis. O enterro passou dentro do quarto, as pessoas usando suas máscaras de não-caras e seus espíritos fúnebres. 

Ela não se mexeu de seu lugar, enquanto se desenrolavam lágrimas de desespero dos não-olhos das carpideiras. Depois, caminhou até a porta de acesso à varanda, tornando a abri-la.

A noite escura adentrou numa lufada. Ela se livrou da pele e, ignorando o bálsamo que se desprendeu, se arremessou para fora, se arremeteu como um Ícaro bêbado, tentando... Tentando um looping.
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 5-4-2020  

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