domingo, 12 de abril de 2020

[As danações de Carina] Grito exilado

Carina Bratt

“A gente passa nesta vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada. E quando alguém mexe com varejão no lodo e turva a correnteza, isso também não tem importância. Água vem, água vai, fica tudo no mesmo outra vez”.
Trecho do romance ‘Água funda’, de Ruth Guimarães.

Eu poderia ficar quieta no meu canto, sentadinha no sofá confortável, lendo um livro, ou escrevendo as minhas crônicas, sem me preocupar com a vida lá fora. Quando falo em “vida lá fora”, referencio às minhas idas e vindas, além da porta da sala que acessa os elevadores. Confesso, caras amigas, tentei, mas os esforços redundaram em vão. Algo aqui dentro do meu quadrado (não descobri exatamente que porcaria é) me incomoda os nervos. Talvez sejam os mais de quarenta e tantos dias de trancafiamentos, ou de confinamentos a que me vi compelida. Aliás, “confinamento”, seria o nome mais certo, ou o que cairia apropriado para tanto despropósito. E bota despropósito na fogueira.

Raciocinem comigo. Rodando pelos mesmos espaços, a saber, quartos, banheiros, sala, varanda, cozinha, e dependência da empregada, por mais que eu goste das minhas coisas, ame meu pequeno mundinho incrustado no décimo andar de um prédio  aconchegante, minha cama de frente para um mar aberto, bonito e azul, meu som, minha tevê, enfim, eu, Carina pessoa, Carina mulher, preciso voltar à rotina do meu quotidiano. Careço sair, ver gente, dar bom dia aos vizinhos de sempre. Conversar pelos cotovelos com a galera da padaria, com as atendentes da farmácia, com os caixas do supermercado, ou simplesmente dar de testa com o Marcondes, porteiro aqui do prédio, e perguntar a ele, pelas minhas correspondências.

Apesar de nova, tenho urgência em trocar as ideias gastas, os conceitos de ontem, por motivações ainda não mastigadas e ingeridas. Preciso viver. Se a gente não faz por onde, ou se esquece que está de passagem, desfrutando do sopro divino que vem lá dos benfazejos de Deus, os cabelos viram flocos de neve, a alma envelhece, o corpo enruga, a pele perde o brilho, o viço, e o espírito padece horrores, encarquilhando. Sem falar nos nervos, que entrarão numa depressão angustiosa e engarrafarão as ideias, esfrangalhando os neurônios. Tudo assim, vapt-vupt, como num simples cair de uma folha de árvore ao chão, ou aquilo de melhor que nos rodeia e nos cerca, virará um inferno.

De repente, entrevejo, atônita e amargurada, que o meu hoje está prestes a retrogradar. Se ele estancar, certamente ficarei ao acaso do incerto e do indeciso, acorrentada, pés e mãos, aos infaustos tenebrosos que o existir, sem dúvida alguma, me arranjará, para me constranger ao rés do pó. Rádio e tevê, nem pensar. Por quê? As emissoras AM-FM, os canais de televisão, os jornais, não trazem outras notícias, senão o mencionamento das passagens catastróficas do coronavírus mundo adentro e afora. Não há um só programa que não aclame a mácula. Percebam, amigas. Virou febre alta, mania de louco, se fez flagelo, peste, úlcera, dentro e fora de nosso lar. Transformou nossas famílias, deu um nó, pior que o górdio, na nossa vontade de continuar a luta pelo amanhã.

Tiro pelo que estou vendo de camarote. Os vizinhos de todos os instantes se calaram temerosos; se fizeram ausentes das decidas; fugiram dos elevadores, se esquivaram de colocarem os sacos de lixos nos desvãos das escadas. As babás, até elas, de descerem para o parquinho com as crianças ao lado da casa condominial. Na piscina, a água límpida se quedou inerte numa sujeira pior que esgoto descido de favela. A sauna virou armário de guardar bagunça. A academia, lá na cobertura, igualmente se fechou e no pouco tempo que “finge abrir”, conto uma criatura, ou outra, movimentando os ossos, como se temesse a chegada de um estranho às dependências do recinto. A pandemia que nos assola, não se chama COVID-19. Tem outro nome. Usa, na certidão de nascimento, um patronímico diferente, aliás, vários. Alguns deles, identificamos como gente, povo, massa, pessoas...

Engraçado, se não fosse trágico. Todos eles, envoltos em máscaras de amedrontamentos, receosos de abrirem as portas, de escancararem as mãos, de se acolherem num simples beijo, até de se falarem. A que ponto crucial chegou o ser tido pela ciência lógica como pensante. Na rua, lá embaixo, percebo (debruçada no gradil de proteção do meu alpendrado), meia dúzia de gatos pingados, cabeças dispersas, criaturas robotizadas, como se tivessem sido convertidas em meros invólucros espirituais. Seres que me passam a impressão de regressados de uma abdução inesperada. Para completar meu clamor expatriado, não há um só programa que não mencione a “disgrazia” da doença, que não é mais um fato isolado: é pura jogada política.

São seres humanos, ou melhor, “indivíduos-urubus”, portadores de doenças asquerosas (por debaixo dos panos encarniçados), querendo se eleger às UTIs do PODER. São vermes pleiteando a perpetuação nos cargos que ocupam. Vale tudo, pela corrida amalucada, desde que a cartada final seja a firmeza contínua e vitalícia na glória deste ou daquele mandato. Funções as quais os gananciosos se apegam de unhas e dentes. Vândalos e infelizes, embrenhados, e, na conta deste arbítrio, matam, ferem, perdem a vergonha, a moral... Jogam no ralo a hombridade e a altanaria. Igual um enorme saco de ratos esfomeados, sem tirar, nem destirar, varejeiras rastejantes, que não se despregam da postura pela busca de um naco do queijo. Por ele, pelejam, esbravejam, se comem, se digladiam, como se tivessem, nas mãos, os passaportes do Eterno, com vistos à vida plena e não houvesse a morte, no meio do caminho, atrapalhando. 

Um silêncio mortal e muito forte avançou sobre a população, sobrecarregou a ilusão das pessoas, se estendeu como ondas de um vendaval proceloso, com relâmpagos e trovoadas destruindo sonhos, pretensões, devaneios e fantasias. Os meus medos e sobressaltos, os meus sustos e tremeliques, ao invés de irem embora, junto com os ribombos da tempestade, cresceram e se agigantaram, tomaram proporções nunca dantes imaginadas.  Antes, eu sentia medo de morrer. Tentava amansar as tristezas da vida com palavrinhas e ações suaves, advindas da solidão. Hoje tenho medo de continuar seguindo a mesma solidão que me envolve e passa sorumbática por sobre minha cabeça como nuvens densas de um céu dementado que de há muito deixou de ser de brigadeiro.
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 12-4-2020     

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