domingo, 2 de junho de 2024

[As danações de Carina] Na solidão das almas despedaçadas

Carina Bratt 

EXISTE, EM PARALELO ao nosso mundo, um outro universo onde as almas pedidas e abalroadas vagam frangalhadas, tristes e solitárias, sem rumo ou paradeiro certo. Não são apenas corpos destroçados ou chocados por alguns infortúnios que se moveram pelas ruas e avenidas, mas sim, por conta de fragmentos ou por frações incompletas de existências totalmente quebradas. Estilhaços e cavacos perdidos, oriundos de suas mais intrincadas melancolias e fatalidades. Essas almas migalhadas, é bom que se deixe esclarecido, não se encontraram ao deus-dará por mero acaso. Elas se cruzaram em algum ponto do caminho por esquinas sombrias, becos e desvãos, sem saberem exatamente para onde seguirem. No final, sem destino ou porto seguro, se amontoaram como pobres mendigos ou moradores de ruas, nos bancos das praças e nas calçadas das casas e bares, restaurantes e portas de igrejas sem os prognósticos auspiciosos de uma gota de perspectiva ou de um amanhã benfazejo. 


Seus olhares, de igual modo, se entrelaçaram, como fios invisíveis que conectaram não só as suas dores e percalços, também os anseios e as palpitações, as infâmias e dissabores que só fizeram servir para melindrar o que já se achava enfermo e debilitado. Nesse campo minado de solidão e angústia, notadamente de um tremendo desconforto compartilhado, encontraram um refúgio. Ou algo parecido que nada tinha a ver com uma ‘estalagem-albergue.’ Esse tirano, ou dito de forma mais clara, esse ser bárbaro e selvagem, literalmente inumano e sombrio, se alimentou exatamente da fraqueza e do aniquilamento, da fragilidade e do acabrunhamento alheio. Como tal, esse degenerado ronda todos os dias, de forma incansável, essas almas. Se amolda a elas numa tentativa de aprisiona-las. Em verdade, ele, o sanguinário, não se faz ou não se mostra apenas como um opressor. Lado igual, se divulga como um mestre formado e licenciado na faculdade, notadamente na ‘matéria-arte’ de manipular. 

E como um doutor do mal, serve apenas para engendrar e manejar os sentimentos humanos. Esse vilão sabe como quebrar ou aniquilar ainda mais o que já se encontra apartado ou divorciado , grosso modo , ‘disjuntado’ ou irremediavelmente partido. Essa figura maldita sabe como sugar, a poucos goles, o escasso que ainda resta de solidariedade e, nesse trilho, peleja tenazmente para continuar vivendo. As almas, por sua vez, alicerçadas numa cegueira de grau incalculável, acreditam piamente necessitar desse maldito. Ele oferece uma ilusão escura, uma proteção negra, um abrigo oco e vazio, contrário a todos que estão famintos e desejosos de uma gota de amor e de esperança. Assim, as criaturas incautas, ou as almas carecidas se entregam a ele, permitindo que as suas feridas sejam não saradas curadas ou atenuadas , em oposto , exploradas. Mesmo norte, que as lágrimas derramadas se vejam colhidas e secadas como se fossem gotas preciosas de um líquido de natureza rara. 

Em igual sentido, uma ‘outra força, igualmente silenciosa,’ se move sorrateira entre essas pobres, ingênuas  e sofridas ‘almas-criaturas-sem futuro,’ e como o lado podre da coisa, se faz imediatamente dadivosa. A goles poucos, e sempre por debaixo dos panos, oferece a preços módicos, uma solidariedade infinita,’ uma esperança que não se barganha, menos ainda se ordena, ou se mostra improdutiva. A quem a ela se irmana, acontece uma reação harmoniosa e eficaz. É como se os pedaços quebrados se unissem formando uma teia imensa e invisível, única e poderosa de compreensão mútua. Nessa teia ‘não-mentirosa,’ os mais de trocentos frequentadores encontram a força magnânima para resistirem ao vilão. Num desses dias passados, uma alma boa jogada ao abismo dos insondáveis, teve a sorte de espiar para os olhos de uma outra alma (tão desgraçada como a sua própria e viu a mesma dor que sentia refletida em seu semblante.) 

Como se faziam do mesmo naipe, não precisaram de palavras para entenderem que não se achavam mais sozinhas e desamparadas. Nesse pé, começaram a costurar com as demais em estado de necessidade os seus respectivos pedaços. Se irmanaram, por fim, umas às outras, criando algo novo, algo forte e poderoso, indestrutível e imudável. O crapuloso, percebendo a ameaça iminente, tentou de todas as formas separá-las. Contudo, o clamor dominante da solidariedade em sua forma indestrutível e impecável de resguardo e agasalho, se fez mais forte que qualquer manipulação que viesse com a vontade férrea de destruir e aniquilar. Desse dia em diante, verdade seja declarada, as almas sofridas e desorientadas se ergueram juntas, todas num só fôlego de sobrevivência, formando uma espécie de ‘barreira protetiva coesa’ , melhor dito –, um escudo impenetrável face ao maldito incivil. Aos poucos, gradativamente, o desterro ermo da solidão se aniquilou totalmente dissipado. 

Em resumo, minhas amigas da ‘Grande Família Cão que Fuma Cão que Fuma’ a minha intenção foi uma só. A de mostrar, nesse humilde texto, algumas deixas visando unicamente sedimentar a ideia plana e clara, ou o porto seguro onde prevalece a ‘força-salvadora,’ e nela, embutida de graça, a perfeição, a realeza e a felicidade, a riqueza  incontestável e inteiriça que une e se faz pujante na união das almas, por mais perdidas que possam estar. É na compreensão mútua, na sólida e indestrutível reciprocidade, ou na generosa cooperação, coleguismo e camaradagem que se afasta, de forma definitiva, o vazio aniquilador. Nesse passo, ainda que completamente depauperadas , inseguras ou deprimidas, elas , as almas (cá entre nós, as nossas almas), encontrarão um caminho novo, uma trilha virginal e colossal para a busca da verdadeira cura para todos os malefícios acaso existentes em nossas vidinhas cotidianas. 

Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, Espírito Santo, 2-6-2024 


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