sábado, 19 de abril de 2025

Judiciário se recusa a revelar quantos ainda estão presos pelo 8 de janeiro

Mesmo garantidas por lei, informações básicas sobre os presos do 8 de janeiro seguem escondidas por trás de sigilos ilegais e negativas formais

David Agape 

Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil

Quantas pessoas ainda estão presas por ordem do Supremo Tribunal Federal em decorrência dos atos de 8 de janeiro de 2023? A resposta oficial, reiterada por STF, Ministério Público Federal e Polícia Federal, é o silêncio — sustentado por sigilos vagos, negativas formais e procedimentos burocráticos que contornam a Lei de Acesso à Informação (LAI). Na prática, o sistema de Justiça esconde os números do encarceramento político mais significativo da história recente do país.

A apuração partiu de uma missão aparentemente simples, que recebi da equipe do Estúdio Quinto Elemento, que preparava um especial de Páscoa sobre o tema: quantas pessoas ainda estão presas por decisão do STF nos inquéritos relacionados ao 8 de janeiro? (INQs 4879, 4880, 4921, 4781 e Petição 11028.)

A busca revelou algo maior do que a ausência de dados: nenhuma instituição está disposta a prestar contas, mesmo sobre informações básicas e consolidadas. Todas as tentativas de obter os números foram recusadas com justificativas frágeis ou ilegais. O levantamento também expôs um sistema que trata presos políticos como números invisíveis. Ainda assim, o esforço coletivo por transparência começou a surtir efeito: a simples organização dos casos mais graves pressionou autoridades e resultou na soltura de ao menos três pessoas.

Esta reportagem reconstrói os bastidores desse apagamento institucional e documenta o que o Judiciário brasileiro se recusa a dizer em voz alta: quem ele prende — e por quanto tempo.

A busca que rompeu o silêncio

O primeiro passo de uma reportagem investigativa é buscar informações em reportagens já publicadas na imprensa tradicional. Entretanto, não encontrei os dados em nenhuma fonte atualizada ou oficial. Perguntei então a colegas jornalistas. Eli Vieira, que atualmente escreve no Portal Cláudio Dantas, me informou que o deputado federal Marcel Van Hattem (NOVO-RS) havia solicitado a informação à assessoria parlamentar da Procuradoria-Geral da República. Abordei a assessoria do deputado, que confirmou a solicitação, mas até o momento desta publicação, a informação também não havia sido fornecida pela PGR.

Em seguida, entrei em contato com advogados que acompanham o caso diretamente, na tentativa de acessar números parciais. Conversei com Ezequiel Silveira, advogado e representante da ASFAV (Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro). Ele confirmou o que já se suspeitava: ninguém possui a informação consolidada, nem mesmo a própria associação.

Silveira contou que já pensou em organizar um censo com os nomes e perfis dos presos, mas esbarrou na resistência dos próprios detentos e de suas famílias, que temem que a exposição pública de suas situações possa resultar em retaliações ou dificultar progressos nos processos judiciais.

Sugeri a Silveira que, se um levantamento geral era inviável, ao menos listássemos os casos mais graves — uma espécie de amostragem humanizada para romper o apagamento. E foi o que fizeram. A ASFAV elaborou uma lista com 20 nomes, acompanhada por um relatório de mais de 500 páginas, denunciando casos de doenças graves, idosos encarcerados, mães com filhos pequenos e pacientes psiquiátricos em prisão prolongada.

O material foi enviado formalmente ao deputado Luciano Zucco (PL-RS), líder da oposição na Câmara, que o utilizou para embasar o requerimento de criaçãode uma subcomissão especial na Comissão de Segurança Pública. A subcomissão foi aprovada em 1º de abril de 2025, com o objetivo de investigar violações de direitos humanos no contexto dos presos do 8 de janeiro e pressionar pela tramitação do PL da Anistia, ainda travado na presidência da Casa.

Poucos dias depois, em 9 de abril, Zucco também encaminhou um ofício ao ministro Alexandre de Moraes solicitando a extensão das decisões de prisão domiciliar concedidas a três réus do 8 de janeiro — Jaime Junkes, Eliene Amorim de Jesus e a cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos — a todos os demais presos em situação semelhante. O documento listava os 20 casos graves reunidos pela ASFAV e sugeria a criação de uma força-tarefa no STF para garantir celeridade no julgamento dos presos e evitar novas tragédias como a morte de Cleriston Pereira da Cunha, o Clezão — vítima de negligência institucional, após o ministro Alexandre de Moraes não deliberar a tempo sobre seu pedido de prisão domiciliar, mesmo com parecer favorável do Ministério Público.

Poucos dias depois da entrega do relatório e da formalização da subcomissão, ministros começaram a conceder liberdades. Entre os beneficiados estão Marcos Alexandre Machado de Araújo, preso desde abril de 2023 e internado na ala psiquiátrica; Sérgio Amaral Resende, com pancreatite necrosante, hérnia umbilical e anemia profunda, que teve sua soltura determinada em 18 de abril de 2025, enquanto esta reportagem era finalizada; e o caso mais emblemático: o pastor Jorge Luiz dos Santos.

Preso desde o próprio 8 de janeiro de 2023, Jorge Luiz, de 59 anos, foi condenado a 16 anos e 6 meses de prisão mesmo sofrendo de hipertensão grave e sopro cardíaco grau 6, condição que impede o controle da pressão arterial por medicamentos. Em 15 de abril, a situação chegou ao limite: um laudo pericial apontou a necessidade de cirurgia cardíaca imediata e alertou que o ambiente prisional era inadequado para o tratamento e recuperação. Ainda assim, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, manifestou-se contrariamente ao pedido de prisão domiciliar humanitária. Cabia, então, ao ministro Alexandre de Moraes a decisão final.

A pressão popular e institucional surtiu efeito. Na mesma data, Moraes revogou a prisão preventiva de Jorge Luiz e autorizou que ele cumprisse prisão domiciliar monitorada por tornozeleira eletrônica, com proibição do uso de redes sociais. A decisão, fundamentada nos artigos 66 e 117 da Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84), atendeu à urgência do caso.

Quando o Estado fecha todas as portas

Outro caminho que percorri para obter a resposta foi recorrer à Lei de Acesso à Informação (LAI). Como repórter, eu já havia feito diversos pedidos ao STF por meio da assessoria de imprensa, sempre sem sucesso. Desta vez, optei por acionar o mecanismo legal previsto na LAI, que obriga órgãos públicos a fornecerem informações de interesse coletivo ou geral, conforme determina o art. 5º, XXXIII da Constituição Federal e os artigos 7º e 10 da própria lei.

Criada em 2011 (Lei nº 12.527), a LAI é um dos pilares da transparência no Brasil. Ela garante que qualquer cidadão possa solicitar informações públicas a órgãos dos Três Poderes, sem necessidade de justificativa — inclusive pela internet.

Enviei então pedidos para três instituições diretamente envolvidas nas investigações e julgamentos dos atos de 8 de janeiro:

·         STF (Gabinete do ministro Alexandre de Moraes);

·         MPF (Ministério Público Federal);

·         PF (Polícia Federal, via Ministério da Justiça).

O conteúdo dos pedidos era simples e direto: Quantas pessoas seguem presas em decorrência dos atos de 8 de janeiro? Não pedi nomes, processos, sentenças, nem dados pessoais. Apenas um número consolidado.

O primeiro a responder foi o gabinete do ministro Alexandre de Moraes, que informou que o pedido “não se trata de solicitação de informação”, alegando que tudo que envolve processo judicial deve ser tratado conforme o regimento interno do Tribunal. No mesmo dia, protocolei recurso em 1ª instância. Argumentei que a solicitação dizia respeito a um dado objetivo e de interesse coletivo, e que a negativa violava dispositivos centrais da Lei de Acesso à Informação — especialmente o artigo 7º, parágrafo 3º, que garante o direito de acesso a dados estatísticos e consolidados, mesmo em casos de sigilo parcial. Também citei o artigo 5º, inciso XXXIII da Constituição, que assegura o direito à informação, e o artigo 37, que determina a publicidade como princípio da administração pública. O recurso foi indeferido com a mesma justificativa genérica. Para piorar, o sistema não habilitou a opção de recurso em 2ª instância, violando o art. 16 da própria LAI, que garante expressamente esse direito.

A resposta do MPF veio poucos dias depois, também em tom evasivo. Informaram que os números de inquérito apresentados não correspondiam a procedimentos internos da instituição. Afirmaram ainda que, por se tratarem de inquéritos judiciais em trâmite no Supremo, caberia à autoridade judicial ou à autoridade policial o fornecimento dessas informações. E concluíram que, como eu não havia encaminhado nenhum anexo que permitisse localizar os dados, o pedido seria finalizado por “inviabilidade de atendimento”. A negativa do MPF foi acompanhada de uma tentativa sutil de empurrar a responsabilidade para outro órgão, prática recorrente quando o tema é sensível.

Na prática, o MPF alegou que os inquéritos mencionados não estariam sob sua jurisdição direta. No entanto, essa justificativa não se sustenta. O Ministério Público Federal tem participação em todos esses processos — oferece denúncias, se manifesta em audiências, apresenta pareceres e atua ativamente como parte nos julgamentos. Dizer que não possui essas informações ou que não tem como localizá-las é, no mínimo, uma forma de evitar responder a uma pergunta simples e incômoda: quantas pessoas seguem presas por força do próprio sistema judicial federal, com o qual o MPF colabora diariamente?

Essa resposta, ainda que protocolar, escancara uma realidade incômoda: ao afirmar que os inquéritos não tramitam internamente, o MPF revela que não os reconhece como parte da sua esfera de controle ou responsabilidade — por estarem sob jurisdição direta do STF. Isso explicita um dos pilares das ilegalidades dos chamados inquéritos do fim do mundo: o esvaziamento do Ministério Público como titular da ação penal, contrariando o sistema acusatório previsto na Constituição e no Código de Processo Penal. Em vez de exercer sua função de fiscal da lei e promotor da ação penal, o MPF se limita a acompanhar decisões já tomadas por um único ministro, deixando o Judiciário acumular as funções de investigar, acusar e julgar — como denunciado no relatório que produzi para o IFPE.

Já a Polícia Federal respondeu que os dados estão sob sigilo, mas não apresentou qualquer base legal específica, grau de sigilo, autoridade classificadora ou prazo de restrição — como exige o art. 30 do Decreto nº 7.724/2012, que regulamenta a LAI. Além disso, orientou que o pedido fosse feito presencialmente em uma unidade da PF, contrariando o art. 10 da própria lei, que assegura o exercício do direito de acesso por meio eletrônico.

Todos os órgãos ignoraram um dispositivo fundamental da LAI: o artigo 7º, §2º, que garante o acesso à parte não sigilosa de uma informação, mesmo quando parte dela estiver sob segredo, permitindo a divulgação por meio de extrato ou certidão parcial.

A recusa sistemática, acompanhada de justificativas frágeis, demonstra um padrão de opacidade institucional, onde o sigilo se torna uma blindagem contra a transparência — e não uma exceção prevista em lei.

A resposta que não existe

As instituições públicas resistem sistematicamente a fornecer qualquer dado consolidado sobre os detidos. Nenhum órgão apresentou sequer uma estimativa aproximada. Diante da recusa do Estado em informar, resta a alternativa mais primitiva: levantar os nomes um a um, verificar decisões judiciais dispersas e cruzar as listas de presos e soltos até restar quem ainda está em cárcere. É um trabalho hercúleo, impreciso e indigno de um Estado democrático de direito. Mas, em 2025, essa é a única via possível para acessar um dado elementar: quantas pessoas seguem presas por ordem direta de um ministro do Supremo Tribunal Federal. A população terá que fazer o que o sistema de Justiça se recusa a fazer.

A recusa sistemática em informar, amparada por sigilos vagos e desprovidos de fundamento, não é um desvio pontual — é parte de um padrão. Um padrão que vem sendo chamado por juristas e defensores de direitos fundamentais de lawfare: o uso do aparato judicial como instrumento de perseguição política. Os números não são apenas ocultados. Eles são tratados como ameaça, porque evidenciam a desproporção das prisões, a seletividade das penas e o uso do direito penal como forma de silenciamento. A ausência de dados, portanto, não é uma falha burocrática. É a face invisível de um sistema que abandonou a imparcialidade

A resposta continua oculta — protegida por sigilos, sem justificativa, e sem qualquer traço de transparência. 

Título, e Texto: David Agape, Substack, 18-4-2025 

Guilherme Spader:
Parabéns pelo excelente trabalho. Não desista, você vai encontrar muita resistência do sistema, mas também vai encontrar, mesmo dentro do próprio sistema, quem esteja disposto a ajudar, por que essa causa - transparência - é muito justa.

Fernando L Moraes
Excelente trabalho Jornalístico, Parabéns!!

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Um comentário:


  1. AINDA BEM QUE A INVAAVACALHASÃO de 8 de janeiro não foi no Brauzzzil. Se fosse em terras brasileiras, (em Braspília) por exemplo a nossa justisssçççaaa já teria revelado quantos ainda estão presos, quantas já saíram e quantos vão amargar os ossos até que a verdade venha à tona. Por aqui nós temos o fabuloso STF (Salafrários Trocadores de Futricas), o MPF (Maníacos Pulando na Feijoada) e obviamente a PF (Papagaio Falador). Três entidades espíritas que resolvem as coisas mais difíceis do planeta, e o melhor de tudo, em tempo recorde. Sem precisar incomodar a alma de Chico Xavier EM SEU PARNASO DE ALÉM TÚMULO. E um detalhe muito importante. Nem careceria de trazer à baila a honnnnrrrraaaaddddiiiíssssiiiiissssiiiiimaaaa LAI (Ladrões Assustadores de Inocentes). Sem mencionar também, mas já o fazendo, o fato que a nossa Constitiuuitição Fedebemmal é lavada, perdão, é levada muito a sério. Como tudo por aqui não anda, voa, nem precisaremos mencionar a PGR, ou (Procuradorqueria de Gatunos Roedores). Como dissemos, logo no início, ainda bem que a invasão do dia 8 de janeiro não ocucucurreu em nosso Brauuzzzil, FoiI em passárgada. Por estas bundas, perdão, por estas bandas, a noça lei é justa. Aqui as coisas não esperam acontecer, emperram, mas, a trancos e barrancos, se vê a seleção. Só falta o técnico. Temos um presisendente onesto, o país está nos trilhos e esses por aí, que falam mal, que esbravejam, não conhecem ou nunca ouviram falar do Grande Fungador Juscelino, aquele homem que comprou o planalto central inteiro, deu vida a uma cidade eróica nobre e acolhedora, passando, pasmem, um Kubitschek sem fundos.

    Aparecido Raimundo de Souza, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.

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