domingo, 20 de maio de 2012

"O marxismo é uma variante da preguiça"

Bodas bárbaras. Ou: Na era do politicamente cretino
Reinaldo Azevedo

Leiam este texto. Volto depois.

Konstantínos Kaváfis
O marxismo é uma variante da preguiça. Se você acredita que a base material condiciona mudanças na cultura, na forma de pensar e nas relações intersubjetivas, basta fazer como os romanos do poema “À Espera dos Bárbaros”, (ver abaixo) de Kafávis: sentar na calçada e esperar a banda passar. E há os que resolveram acelerar a história para que o inexorável chegasse antes: Lênin, Stálin, Mao, Pol Pot. O resultado se mede em crânios.
O truque da chamada Escola de Frankfurt — de que Habermas é caudatário, embora infinitamente mais chato porque escreve mal — já é mais divertido do que o marxismo clássico. O que em um é consequência vira, no outro, causa, e a cultura é vista como o motor das mudanças materiais. É uma bobagem que alimenta intelectuais cuja profissão é contestar o regime — que lhes garante a liberdade de contestação. Mas muito influente.
O velho marxismo morreu de falência múltipla dos órgãos. A sua realização prática eram as economias planificadas, que não resistiram à globalização — descrita ou antevista, como queiram, pelo próprio Marx no “Manifesto Comunista”. Já ali se podia supor que o socialismo buscava represar o mar. O neomarxismo pretendeu fazer a crítica à ortodoxia esquerdista sem ceder à razão burguesa. Deu em quê?
Da maçaroca de esquerdismos não-dogmáticos nasceu uma vulgata virulenta: o pensamento politicamente correto. Tanto se dedicaram os intelectuais da dita nova esquerda à desconstrução do suposto eixo autoritário das democracias burguesas que a política militante degenerou, nos países ricos, no que Robert Hughes chama de “cultura da reclamação” e, nos pobres, de “excluídos militantes”, que rejeitam os valores universais da igualdade e o Estado de Direito. Querem que suas demandas particularistas sejam tratadas como reparação histórica.
Negros, feministas, homossexuais, índios, sem-terra, sem-teto, sem eira nem beira… Todos anseiam que a História seja vivida como culpa, e a desculpa se traduz na concessão de algum privilégio. Isso que já é uma ética coletiva supõe que todos são vítimas de alguém ou de alguma coisa. De quem ou do quê? Ninguém sabe. “Da sociedade” talvez. A hipótese é interessante. Poderíamos zerar a História, dissolver os contratos e voltar ao estado da natureza. O Brasil já tem um novo “negro” ou um novo “índio”: é o macho branco, pobre, heterossexual e católico. É um pobre coitado, um discriminado, um sem-ONG. Nem os padres querem saber dele.
As “minorias” se profissionalizam, e a luta sempre continua. Não temos uma política pública digna desse nome que se ocupe, por exemplo, da qualidade do ensino fundamental e médio, mas se faz, com cotas e ProUni, suposta justiça social na universidade, onde o único critério cabível de seleção é o saber — que mascararia as diferenças de classe e traria consigo um contencioso de injustiças históricas. Eis o desastre: competência e justiça, nesse raciocínio perturbado, passam a se opor, viram uma disjuntiva. Nas TVs, e até nos cadernos de cultura dos jornais, “manos” do rap e “MCs” fazem-se porta-vozes de uma nova metafísica, oposta àquele saber universal, formalista e reacionário. Padre Pinto é o santo padroeiro dessa guerra à ortodoxia.
Igualdade? Justiça? Reparação? Nada disso. Consolida-se é o divórcio entre os partidários desse igualitarismo — que, de fato, é um particularismo que corrói as bases do Estado de Direito — e os da universalidade. O “novo homem” do antigo marxismo — que era, sim, uma utopia liberticida e homicida — foi substituído pelos bárbaros, cujo mundo ideal é aquele disputado por hordas, tribos, bandos, de que entidades do “terceiro setor” são proxenetas bem remuneradas.
Os tais mercados não dão a menor bola para isso. A plateia que vi mais incomodada e, até certo ponto, indignada com a crítica severa que faço ao PT e a seu viés totalitário era composta de pessoas ligadas ao mercado financeiro. A democracia, como a defendiam os antigos liberais, é a eles irrelevante. Trata-se de dinheiro novo. Assistimos ao casamento entre os hunos e essa gente muito prática. As bodas bárbaras.

Voltei
Esse meu texto saiu publicado no dia 3 de junho de 2006 no jornal “O Globo”, de que eu era colunista antes de meu blog se hospedar na VEJA. Está no livro “O País dos Petralhas”, que eu estava folheando nesta madrugada. Na segunda, conto por quê. É provável que muitos dos novos leitores não o conheçam. Poderia ter sido escrito há alguns minutos, não?
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 20-05-2012
 
À Espera dos Bárbaros
Konstantinus Kavafis (1904)

O que esperamos na ágora reunidos?

É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

É que os bárbaros chegam hoje.
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

Tradução de José Paulo Paes

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