Bodas bárbaras. Ou: Na era do
politicamente cretino
Reinaldo Azevedo
Leiam este texto. Volto
depois.
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Konstantínos Kaváfis
|
O marxismo é uma variante da preguiça. Se você acredita que a base material
condiciona mudanças na cultura, na forma de pensar e nas relações
intersubjetivas, basta fazer como os romanos do poema “À Espera dos Bárbaros”, (ver abaixo)
de Kafávis: sentar na calçada e esperar a banda passar. E há os que resolveram
acelerar a história para que o inexorável chegasse antes: Lênin, Stálin, Mao,
Pol Pot. O resultado se mede em crânios.
O truque da chamada Escola de
Frankfurt — de que Habermas é caudatário, embora infinitamente mais chato
porque escreve mal — já é mais divertido do que o marxismo clássico. O que
em um é consequência vira, no outro, causa, e a cultura é vista como o motor
das mudanças materiais. É uma bobagem que alimenta intelectuais cuja profissão
é contestar o regime — que lhes garante a liberdade de contestação. Mas
muito influente.
O velho marxismo morreu de
falência múltipla dos órgãos. A sua realização prática eram as economias
planificadas, que não resistiram à globalização — descrita ou antevista,
como queiram, pelo próprio Marx no “Manifesto Comunista”. Já ali se podia supor
que o socialismo buscava represar o mar. O neomarxismo pretendeu fazer a
crítica à ortodoxia esquerdista sem ceder à razão burguesa. Deu em quê?
Da maçaroca de esquerdismos
não-dogmáticos nasceu uma vulgata virulenta: o pensamento politicamente correto.
Tanto se dedicaram os intelectuais da dita nova esquerda à desconstrução do
suposto eixo autoritário das democracias burguesas que a política militante
degenerou, nos países ricos, no que Robert Hughes chama de “cultura da
reclamação” e, nos pobres, de “excluídos militantes”, que rejeitam os valores
universais da igualdade e o Estado de Direito. Querem que suas demandas
particularistas sejam tratadas como reparação histórica.
Negros, feministas,
homossexuais, índios, sem-terra, sem-teto, sem eira nem beira… Todos anseiam
que a História seja vivida como culpa, e a desculpa se traduz na concessão de
algum privilégio. Isso que já é uma ética coletiva supõe que todos são vítimas
de alguém ou de alguma coisa. De quem ou do quê? Ninguém sabe. “Da sociedade”
talvez. A hipótese é interessante. Poderíamos zerar a História, dissolver os
contratos e voltar ao estado da natureza. O Brasil já tem um novo “negro” ou um
novo “índio”: é o macho branco, pobre, heterossexual e católico. É um pobre
coitado, um discriminado, um sem-ONG. Nem os padres querem saber dele.
As “minorias” se
profissionalizam, e a luta sempre continua. Não temos uma política pública
digna desse nome que se ocupe, por exemplo, da qualidade do ensino fundamental
e médio, mas se faz, com cotas e ProUni, suposta justiça social na
universidade, onde o único critério cabível de seleção é o saber — que
mascararia as diferenças de classe e traria consigo um contencioso de
injustiças históricas. Eis o desastre: competência e justiça, nesse raciocínio
perturbado, passam a se opor, viram uma disjuntiva. Nas TVs, e até nos cadernos
de cultura dos jornais, “manos” do rap e “MCs” fazem-se porta-vozes de uma nova
metafísica, oposta àquele saber universal, formalista e reacionário. Padre
Pinto é o santo padroeiro dessa guerra à ortodoxia.
Igualdade? Justiça? Reparação?
Nada disso. Consolida-se é o divórcio entre os partidários desse
igualitarismo — que, de fato, é um particularismo que corrói as bases do
Estado de Direito — e os da universalidade. O “novo homem” do antigo
marxismo — que era, sim, uma utopia liberticida e homicida — foi
substituído pelos bárbaros, cujo mundo ideal é aquele disputado por hordas,
tribos, bandos, de que entidades do “terceiro setor” são proxenetas bem
remuneradas.
Os tais mercados não dão a
menor bola para isso. A plateia que vi mais incomodada e, até certo ponto,
indignada com a crítica severa que faço ao PT e a seu viés totalitário era
composta de pessoas ligadas ao mercado financeiro. A democracia, como a
defendiam os antigos liberais, é a eles irrelevante. Trata-se de dinheiro novo.
Assistimos ao casamento entre os hunos e essa gente muito prática. As bodas
bárbaras.
Voltei
Esse meu texto saiu publicado no dia 3 de junho de 2006 no jornal “O Globo”, de que eu era colunista antes de meu blog se hospedar na VEJA. Está no livro “O País dos Petralhas”, que eu estava folheando nesta madrugada. Na segunda, conto por quê. É provável que muitos dos novos leitores não o conheçam. Poderia ter sido escrito há alguns minutos, não?
Voltei
Esse meu texto saiu publicado no dia 3 de junho de 2006 no jornal “O Globo”, de que eu era colunista antes de meu blog se hospedar na VEJA. Está no livro “O País dos Petralhas”, que eu estava folheando nesta madrugada. Na segunda, conto por quê. É provável que muitos dos novos leitores não o conheçam. Poderia ter sido escrito há alguns minutos, não?
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 20-05-2012
À Espera dos Bárbaros
Konstantinus Kavafis (1904)
O que esperamos na
ágora reunidos?
É que os bárbaros
chegam hoje.
Por que tanta
apatia no senado?
Os senadores não
legislam mais?
É que os bárbaros
chegam hoje.
Que leis hão de
fazer os senadores?
Os bárbaros que
chegam as farão.
Por que o imperador
se ergueu tão cedo
e de coroa solene
se assentou
em seu trono, à
porta magna da cidade?
É que os bárbaros
chegam hoje.
O nosso imperador
conta saudar
o chefe deles. Tem
pronto para dar-lhe
um pergaminho no
qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
Por que hoje os
dois cônsules e os pretores
usam togas de
púrpura, bordadas,
e pulseiras com
grandes ametistas
e anéis com tais
brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje
empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata
finamente cravejados?
É que os bárbaros
chegam hoje,
tais coisas os
deslumbram.
Por que não vêm os
dignos oradores
derramar o seu
verbo como sempre?
É que os bárbaros
chegam hoje
e aborrecem
arengas, eloqüências.
Por que subitamente
esta inquietude?
(Que seriedade nas
fisionomias!)
Por que tão rápido
as ruas se esvaziam
e todos voltam para
casa preocupados?
Porque é já noite,
os bárbaros não vêm
e gente
recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais
bárbaros.
Sem bárbaros o que
será de nós?
Ah! eles eram uma
solução.
Tradução de José
Paulo Paes
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