domingo, 6 de maio de 2012

O povo saiu à rua (e entrou no supermercado)

Alberto Gonçalves
Para a esquerda, o povo só vale a pena quando está do lado "certo". No lado "errado", o povo é um caso perdido e, conforme alguns comunistas de facções diversas não se eximiram de confessar no 1º de Maio, assaz repugnante. O povo que interessa, aquele que mais ordena e não sei o quê, deveria ter passado o Dia do Trabalhador nas manifestações da CGTP, a vociferar contra a troika e a austeridade. E a rapaziada próxima do Bloco também acharia óptimo que o povo convocasse uns protestos alternativos via Facebook e dedicasse a data a espatifar propriedade pública e privada, a provocar cargas da PSP e a engendrar meia dúzia de mártires.

Para azar da esquerda, as massas, proverbialmente indiferentes à consciência de classe, escolheram passar o feriado no Pingo Doce, a aproveitar o desconto de 50% em todos os produtos. A coisa foi um fenómeno, e consola notar que a célebre "agitação social", sempre prometida e até ver sempre adiada no que respeita à evidente falta de dinheiro, irrompeu justamente por causa da alegada dificuldade em gastá-lo. Embora os saldos do sr. Soares dos Santos originassem dezenas de distúrbios dignos de intervenção policial, nenhum envolvia as políticas, inevitáveis ou grotescas, do Governo: ao que consta, os populares só se irritaram entre si e na disputa de produtos alimentares ou lugares de estacionamento nas imediações das lojas em questão. O povo é sereno enquanto o povo restante não lhe usurpa o arroz, as fraldas ou o vinho a metade do preço. Tem a sua graça.

Porém, nada diverte tanto quanto observar a reacção dos despeitados a um alvoroço que, sendo talvez um bocadinho exagerado, é no fundo compreensível (mesmo um leigo em aritmética suspeita que poupar 50% é imenso). Ler os blogues comunistas, ortodoxos ou folclóricos, é revisitar pela enésima ocasião o nojo dos iluminados perante o cidadão comum, o qual ignora os deveres que os iluminados teimam em prescrever-lhe. De ignorante a zombie, o cidadão comum viu-se insultado de tudo, apenas porque prefere torrar o salário em bens de primeira ou segunda necessidade em lugar de aplicá-lo em quotas sindicais e cocktails molotov.

Apesar do apego à santidade da data, a esquerda não gosta de trabalhadores reais: gosta de moços de recados, que em democracia derrubariam as prateleiras cheias dos supermercados e num regime perfeito percorreriam ordeiramente as prateleiras vazias, de senha de racionamento na mão. A apatia de que a esquerda acusa o povo é, precisamente, o que a esquerda acha faltar-lhe. E a mítica "luta" pela liberdade é, sem surpresas, a luta contra a liberdade alheia, dilema irresolúvel que Marx legou aos herdeiros.

Por regra, os herdeiros disfarçam o paradoxo sob o verniz retórico. Mas, às vezes, basta uma insignificância como a acção promocional de uma empresa para que a esquerda confesse o absurdo que a move. Coisa de maluquinhos? Parece. Por isso convém dar-lhes um desconto.

Rumores indicam que as promoções do Pingo Doce não ficarão por aqui. Os supermercados rivais ameaçam reagir à altura. A 2 de Maio, o Ikea aplicou o desconto de 50% em 300 artigos. A Ryanair inspira-se na campanha do Jerónimo Martins para publicitar os seus saldos permanentes. E até os preços dos combustíveis exibem vestígios de queda (infelizmente, em percentagem bastante inferior). Onde é que isto vai parar? Um dos raros prazeres inerentes às crises é a possibilidade de nos queixarmos com razão de que a vida está pela hora da morte. Se a moda pega e os preços desatam a cair proporcionalmente à subida dos impostos, as queixas perdem fundamento e graça.

Claro que podemos imitar os sindicatos, os produtores, os fornecedores, os fabulosos técnicos da ASAE e a excelentíssima ministra da Agricultura e queixarmo-nos dos preços baixos, ou dumping em jargão socialista. Mas, não sei porquê, não soa tão bem. Se, por exemplo, desembolsar dez ou quinze euros por um bilhete de avião representa uma humilhação do consumidor, à semelhança do que se disse a propósito dos saldos do Pingo Doce, julgo que, de modo geral, o consumidor incauto prefere ser simbolicamente humilhado por capitalistas gananciosos a materialmente roubado por um Estado paternal.

Em simultâneo, outro aborrecimento ligado à potencial epidemia das rebaixas é o condicionamento de escolhas do consumidor esclarecido, aquele que não foi na estratégia do sr. Soares dos Santos e nunca irá em manobras de marketing destinadas à ralé. Não vi uma única arenga contra a campanha do Pingo Doce que não terminasse com a promessa do autor de que não voltaria a pôr lá os pés.

A acreditar na promessa (e a acreditar que tais sujeitos costumavam frequentar uma cadeia dirigida às massas brutas), o consumidor esclarecido arrisca, em nome da coerência, interditar a própria entrada numa excessiva quantidade de estabelecimentos. No exemplo das viagens aéreas, será por enquanto livre de pagar na TAP dez vezes o que pagaria na Ryanair. Nos bens essenciais, porém, a coisa começa a restringir-se perigosamente às lojas gourmet e ao comércio tradicional, doravante os refúgios dos que não se deixam enganar e estão dispostos a pagar caro por isso…
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 06-05-2012

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