Maria João Avillez
São coisas de campanha,
nega-se hoje o que se exibiu ontem como “viável” e “certo” e quero crer que
parte dos mestres cozinheiros de Costa não são uns folgazões, são apenas
optimistas sem esforço.
1. Entre a culinária de um souflé e um mais comezinho empadão, as
papilas gustativas não costumam vacilar. Esponjoso e apetitoso quando surge em
cena, sabe-se porém que mesmo confecionado por mãos de fada, o souflé quase
sempre desabará até se tornar uma mistura pouco identificável no prato: apesar
da sua leve graça, a receita não lhe garante durabilidade fiável. O empadão,
sem quase nenhum poder de convocatória, é peça que resiste. Há até muito quem o
prefira, talvez pela tecitura mais sólida ou a massa mais consistente.
Entrou agora aí uma nova
receita/invenção/descoberta de souflé nas mesas nacionais, da responsabilidade
dos mestres cozinheiros de António Costa. Ao contrário do empadão da coligação,
que nas palavras do mesmo Costa apresentaria uma receita velha (mas falar de
receita velha a propósito de um empadão é não saber do que se fala), tão “mais
do mesmo” que ninguém a vai querer provar.
Souflé versus empadão? Sim, ao
que parece mas antes assim: há por onde escolher, serviço mínimo da democracia.
A sala folgou com a nova
receita dos chefes de Costa. Ela seria tão boa que tudo logo se relativizou nos
cozinheiros: eram gente de sabedoria, respeitadores do método com que na
“Europa” se fazem souflés (só queriam discuti-los um bocadinho, aos souflés
e ao método). Aquilo da fé no souflé do Syriza teria sido um equívoco alheio,
quem sabe mesmo uma infelicidade, e aquela de aumentar o salário mínimo fora um
devaneio, igualmente alheio aos sábios, como outros anunciados há meses. E
claro, logo expeditamente arredados para o guarda-roupa socialista onde se
arrumam as coisas que já não irão ser usadas.
Também não tem muita
importância, tem só alguma, são coisas de campanha, nega-se hoje o que se
exibiu ontem como “viável” e “certo” e quero crer que parte dos mestres
cozinheiros de Costa não são uns folgazões, são apenas optimistas sem esforço.
Saberão certamente somar e diminuir, mesmo quando pode não parecer.
Longe de mim, portanto, a
(imbecil) ideia de suspeitar dos seus dotes ou de duvidar do empenho juvenil –
eles dirão certamente patriótico – com que se meteram nisto e já aqui o
sublinhei com ênfase. Suspeito é dos ingredientes escolhidos, da combinação
entre eles e da receita final. Grande parte da media devorou-a com jubilo e o
que não falta já são voluntários para achar apetitosa a nova oferta culinária,
muito mais do que saber se ela aguentará no prato depois de servida. Os
entusiastas da iguaria não querem que os perturbem na degustação e como de
costume, os soi-disants empresários nacionais estão à cabeça
das tropas voluntárias. Não é verdade que vêm aí dias mais felizes traduzidos
em mais Estado, mais oferta de “apoios”, mais encostos, quem sabe mais
dinheiro? Mas como sempre vivemos com eles e sempre foi assim, também isto
talvez não tenha importância, é o que há.
O que pelo contrário me
pareceu que teve importância pelo que não disfarça foi o regozijo igualmente
juvenil com que António Costa acolheu o francês Piketty (sempre tão louvado
especialmente por quem não leu o seu livro e recebido na Gulbenkian com uma
espécie de provinciano alarido que me constrangeu). Sucede que António Costa
nem é um estudante num campo de férias nem tão pouco me parece que tenha o
direito de “usurpar” de Piketty o que ele não disse bem assim…
Costa falou como se o
economista da moda remetesse exclusivamente a salvação da Europa para o fim da
austeridade e mais: usou até de invejável segurança para afirmar o que não está
escrito, decidido, provado, ou sequer em curso em lado nenhum. De momento não
está, Costa tem de o saber e como tal não parece sério – nem recomendável
– falar com futilidade do fim da história. A futilidade emitiu porém um
duplo mau sinal: primeiro, as razões da exaltação “pikettyana” de António Costa
contradizem a moderação intencionalmente expressa no documento de trabalho do
PS. Pode discordar-se dele, não se pode classificá-lo de radical, esquerdista,
ou syrizista. E depois, em que ficamos se uns dias o líder socialista se assume
como um candidato a chefe do governo, tranquilizando – em privado e em público
– empresários, capitalistas (?) e decisores e nos outros dias, exibe retórica
inflamada e discurso político radical e por isso totalmente inconsequente?
Por este andar não se admirem
se houver candidatos ao empadão. Entre os que nunca confessarão que o preferem,
os que detestam empadão mas a quem a ideia de um souflé pode parecer refeição
demasiado ligeira para a exigência dos dias, entre os que já decidiram por
ele mas não o dizem (e para quê apregoar que se prefere um vulgar empadão a um
sofisticado souflé, correndo o risco de destoar do (falso?) ar do tempo ou de
desafinar no coro das “expectativas?) e os que finalmente gostam genuinamente
de empadão, pode haver mais comensais do que se julga.
A vida tem destas coisas.
2. Pequenas notas
para que constem:
A) suspiro de alívio pelo
consenso politico – e moral, bem vistas as coisas – na
condenação da inqualificável greve da TAP e sim: com qual adjectivo
caracterizar o gesto de alguns pilotos da pobre companhia de bandeira nossa,
onde milhares de justos irão indecentemente pagar por meia duzia de impostores?
Viajei de Londres para Lisboa
na véspera do início da paralisação, 5ª feira, 30 de Abril. Sucede que dois
passageiros, misteriosamente desaparecidos minutos antes do voo, atrasaram a
partida em 55 minutos, havendo que descarregar a sua bagagem, voltar a pedir
autorização para descolar, integrar a fila já saturada de aviões na pista de
Heathrow. Pois bem, foi público e notório o esforço do comandante nos repetidos
pedidos de desculpas, talvez pela vergonha de ser confundido com um grevista do
dia seguinte. Pode ser que me engane e ele fosse até um dos maestros da greve,
mas caiu-me bem que o “maitre à bord” tivesse percebido como aquele atraso nos
transtornava o dia e a vida, e sem culpa alguma se tivesse penitenciado por
ele. Uma banalidade? Por vezes são bem-vindas.
B) Distração não deve ter
sido, talvez cansaço, mas mesmo assim… Como é que um político experimentado,
pouco dado a arroubos e elogios e com a endurance de Passos
Coelho lhe ocorre um descabido (e para quê? ) elogio a Dias Loureiro a
propósito de alguém que singra bem na vida? Foi há dias na inauguração de uma
queijaria e é tão esquisito e inesperado no pisar prudente do primeiro-ministro
que apetece perguntar o que se terá passado? Ignorava que Dias Loureiro lá
estava e teve de dizer algo à pressa (porquê?). Não lhe prepararam a visita?
Não há um staff encarregue de obviar as surpresas e de preparar o caminho como
fazem os avisados? Não há explicação possível, tendo em conta os personagens.
Mas compreensão, também me parece difícil que haja e aceitação ainda menos. Os
tempos não estão para infelizes demonstrações públicas de amizade.
C) A luta feroz – ou
deveria antes dizer retrógada? – contraa instalação da Uber em Portugal radica no pior de nós: medo do
desconhecido, terror do risco, pouca ou nenhuma afeição pelo “novo” mesmo que
ele signifique um salto qualitativo, incapacidade de ler os sinais do futuro.
Sucede que a “instalação” neste, digamos, modo de vida, é tão forte que tolhe a
vista do essencial: pela sua natureza e pelos seus próprios limites, o Uber
nunca arredará o táxi do costume. Não têm exactamente os mesmos objectivos, não
servem nem preenchem os mesmos requisitos. Há espaço para os dois. O que não
parece em parte continuar a haver entre nós, é a capacidade de fazer do futuro
um trunfo em vez de um escolho.
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