domingo, 10 de julho de 2016

Frases da semana

Alberto Gonçalves
"Agora vejo que somos uma grande nação" (popular entrevistado pelas televisões após a vitória da selecção portuguesa sobre a selecção do País de Gales). Naturalmente. É sabido que os êxitos futebolísticos traduzem e inspiram as genéricas glórias de um país, e não vale a pena lembrar a felicidade que se abateu sobre a Grécia depois da conquista, em 2004, do exacto campeonato de que agora se fala. E do Brasil, campeão do mundo cinco vezes, nem é bom falar: a cada título, a prosperidade subia para níveis quase insuportáveis. Em abono da justiça, convém notar que não se trata de um predicado exclusivo da bola, já que os triunfos nas corridas também fizeram do Quénia o portento económico e social que se conhece.

"Somos milhões a festejar. Portugal está de parabéns. No Domingo gritaremos mais alto: Viva Portugal! #EURO2016 #POR" (António Costa no Twitter). Nunca um primeiro-ministro adoptara com tamanho vigor as chamadas "políticas de proximidade": atento aos assuntos verdadeiramente prioritários, o dr. Costa é indistinguível do cidadão que desabafa nas "redes sociais" ou no café, e que não perde uma transmissão do autocarro em Marcoussis. Só a quantidade e a qualidade dos clichés o distinguem e colocam entre os eleitos, ou, no caso, nem isso.

"Heróis do mar, nobre povo, nação valente etc." (locutores da bola no fim dos relatos). Além de constituir uma peça melódica e lírica superior, A Portuguesa cai sempre bem até em situações menos protocolares. De resto, está cientificamente provado que a sua interpretação emocionada em ocasiões sortidas e inesperadas consolida o nosso lugar muito acima das demais nações da Terra. Há que ter pena delas, coitadas. E esmagá-las nos relvados. Que importa sermos a vergonha da Europa a sério se somos o orgulho da de brincar?

"No Domingo cantaremos de galo" (trocadilho hilariante ouvido por aí). A ideia inicial passava por vencer a Alemanha na final e, assim, ridicularizar a sra. Merkel e arruinar os boches, esses presunçosos reticentes em patrocinar--nos a folia ad infinitum. Como a França já tratou disso (em dois dias, a sra. Merkel entrou em depressão e a miséria em Berlim atingiu dimensões dramáticas), cabe-nos esfrangalhar a França, porque acolheu os nossos compatriotas e isso, ao que parece, é uma afronta intolerável. Como diria o dr. Costa, Viva Portugal, o país que obrigou os nossos compatriotas a emigrar.

"Contas feitas, Portugal pode arrecadar neste Europeu 26 milhões" (jornalista não identificado). Calha bem: 26 milhões é justamente o montante que nos faltava para equilibrar o défice, colocar a dívida em ordem, recapitalizar a CGD, financiar uma dúzia de feiras medievais e repor os direitos adquiridos da função pública. É uma sorte, mas a sorte procura-se.

"Somos 11 milhões a acreditar" (quase 11 milhões de portugueses). Claro que a festa só é bonita se for totalitária e ninguém escapar ao fervor. Mas acho que os números pecam por excesso. Suspeito que, se procurarmos com afinco, encontraremos dois ou três vende-pátrias - além de Pedro Passos Coelho - nada empenhados no triunfo da selecção. No fundo, serão os mesmos dois ou três traidores - mais Pedro Passos Coelho - empenhados nas sanções de Bruxelas. É procurá-los, detê-los e, excepto se se encontrarem no rés-do-chão, defenestrá-los. Sem as doses adequadas de patriotismo transtornado, um indivíduo é capaz de tudo, inclusive "torcer" pela França ou contra o governo.

"Portugal vai ter neste ano um novo recorde de turistas" (ministro da Economia). Porquê? O clima melhorou? A temperatura do mar aqueceu? O peixe ganhou sabor? O património abatido ressuscitou? Cristiano Ronaldo será exibido numa montra em Albufeira? Que se saiba, não. Mas em que outro país do hemisfério norte os estrangeiros podem sintonizar os noticiários e contemplar um presidente especializado em dança, bola, obituários e assuntos de Estado em geral? E um primeiro-ministro que, esteja ou não num estádio francês, ri sem parar, talvez por aconselhar o povo a andar a pé ou a pedais (por causa da saúde) enquanto, indiferente ao próprio bem-estar, se desloca de Falcon? E um povo que, quando não insulta franceses, alemães, galeses, polacos ou croatas, recebe maravilhosamente e, de brinde, festeja nas ruas um futuro radioso?

"Estamos a viver um momento histórico" (transeunte alcoolizado na Praça do Marquês). Depois da longa noite "austeritária" e "neoliberal", já tínhamos saudades. No tempo do eng. Sócrates, vivíamos momentos históricos com regularidade diária. O homem inaugurava uma fábrica de alfinetes autossustentável com o dinheiro dos contribuintes e, pimba, havia momento histórico. O homem assinava um protocolo com um torcionário qualquer e, pumba, havia momento histórico. O homem espirrava e, atchim, havia momento histórico. A coisa chegou a tal ponto que se tornava complicado distinguir o que era realidade e o que era história. Hoje, graças à selecção, ao governo, ao presidente, aos Falcon e a este prodigioso país, pode ser dia de história. A realidade que espere.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 10-7-2016

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