Alberto Gonçalves
Não sou consumidor da
cobertura televisiva dos incêndios, que inclui repórteres ofegantes, populares
desesperados e "directos" de labaredas que terminam de madrugada,
quando as labaredas continuam em pleno e as audiências não. Porém, não partilho
o zelo dos que apelam à "contenção", ou de facto à abolição de
imagens assim. O pretexto é evitar fenómenos de contágio: segundo esta tese, o
potencial pirómano, até aí sossegado no sofá de casa, é instigado pelo
"telejornal" a cumprir o seu destino e corre para a mata com um Zippo
e um jerricã de gasolina. O objectivo real é evitar o mau aspecto e preservar a
felicidade extrema que o povo, por graça do governo, deve experimentar sem
interrupções. Enquanto tudo ardia há dias, a única manifestação do
primeiro-ministro consistiu em congratular pelo Twitter a vencedora de um
"bronze" olímpico. Quem não salta de alegria e prefere deprimir-se
com a fuligem que esconde o céu não é patriota.
Entre parêntesis, as
tentativas de censura, perdão, de contenção não são, bem entendido, uma
novidade: desde que o país adquiriu o hábito de irromper em chamas no Verão que
cada poder vigente procura poupar os espectadores a maçadas. Nova, parece-me, é
a tendência de alargar a censura, perdão, a contenção a todos os alvoroços que
belisquem o sossego oficial e oficioso. Já a recente sucessão de atentados na
Europa levou almas delicadas a sugerir que os atentados não fossem noticiados.
O pretexto - lá vamos nós - era a necessidade de não cair na propaganda do
Estado Islâmico. O objectivo, esgotados os esforços para atribuir culpas à
psiquiatria e à exclusão social, era dissimular a influência do islão nas
matanças. Se a moda pega, não se passa nada sobre os incêndios, não se passa
nada sobre o terrorismo, não se passa nada sobre o buraco sem retorno em que a
frente de esquerda está a meter-nos, não se passa nada, ponto. Descontados,
claro, a medalha no judo ou no dominó, imensa bola e tontinhos eufóricos com a sorte
de serem portugueses. É a consagração da escola de jornalismo de Pyongyang.
Fechado o parêntesis,
regresso, salvo seja, aos incêndios. E para constatar, pasmado, a
extraordinária quantidade disponível de peritos no tema. Principalmente as
televisões foram ocupadas por resmas de comentadores especializados em fogos e
especializados em ridicularizar as teses dos restantes especialistas em fogos.
Por um lado, estranha-se que um lugar com esta concentração de sábios arda com
tamanha facilidade e tamanha regularidade. Por outro, compreende-se que apenas
a profusão de devastações fomente o surgimento dos sábios: em princípio, os
estudiosos das cheias também não vivem no Death Valley.
Por mim, lamento não
acrescentar coisa nenhuma ao emocionante debate. Salvo banalidades: com
frequência, a área ardida em Portugal supera a de qualquer membro da União
Europeia, e este ano quase supera a dos demais membros juntos. É possível que o
crime tenha demasiado a ver com isto. É possível que a incúria e a demografia e
o acaso não ajudem. É garantido que destruir é fácil, e que a destruição é
facílima onde a incúria manda e dois terços do território são largados ao
acaso. No fundo, é o que sempre disse, nas ocasiões em que a actualidade me
pedia umas linhas a propósito dos incêndios e eu, sob pena de insensibilidade,
obedecia. Muitos alteram o discurso de acordo com as circunstâncias.
As circunstâncias são aliás
curiosas. Em 2005, o inimitável dr. Costa era ministro da Administração Interna
de um governo que recusou uma proposta de prevenção do Instituto Superior de
Agronomia e, nas palavras do actual deputado socialista Ascenso Simões, cometeu
o "erro grave" de optar "pelo derradeiro elemento da cadeia de
valor - o combate". Em 2016, o dr. Costa lidera o governo e, logo que as
férias e o Twitter lhe permitiram, apareceu a avisar os néscios que "não
pode haver a ilusão de que os incêndios se evitam combatendo-os". Há dez
anos, a cabeça do dr. Costa engendrou um encantador Plano de Defesa da Floresta
- obviamente um sucesso - e um concurso público para aquisição de "meios
aéreos", por sinal repleto de pormenores pitorescos. Agora, da cabeça do
dr. Costa sai um "grupo de trabalho" para "reforma da
floresta", que fatalmente correrá pelo melhor.
Nos intervalos dos planos
quinquenais, o PS andou pela oposição a gritar, com a extrema-esquerda, que a
responsabilidade pelos fogos cabia à "direita". As acusações eram tão
firmes que houve ingénuos a imaginar Durão Barroso e Passos Coelho no meio do
arvoredo, o jerricã de gasolina às costas. Em 2016, PS e extrema-esquerda (se a
distinção ainda se justifica) partilham o poder, o lirismo e a falta de
vergonha perante os flagelos estivais. A amadora dramática Catarina Martins
rima "coração" com "aflição" e fala em "impotência".
O PCP critica a Política Agrícola Comum. Uma senhora que anda pelo MAI esperava
"solidariedade europeia". A sério?
Nem a brincar. É difícil
impedir os incêndios. É mais difícil impedir a repulsa face ao uso
"estratégico" das respetivas vítimas. Dia após dia, esta gente que
nos caiu em cima consegue avanços inéditos em matéria de descaramento. O fumo
no ar é um mero sinal da loucura que por aí vai: de desgraça em desgraça, não
são só as chamas literais que ameaçam reduzir Portugal a cinzas. Infelizmente,
os noticiários limitam-se, enquanto podem, a relatar essas. E das outras não há
"meios", terrestres ou aéreos, que nos salvem. Mas haverá um fim.
Daqueles tristes.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Diário de Notícias, 14-8-2016
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