quarta-feira, 28 de março de 2018

Direito à propriedade dos outros

Maria João Marques

É delicioso ver como para certa esquerda viver nos subúrbios (esses bairros de lata ou sucedâneos) é bom para a arraia miúda, a intelectualidade tem de viver nas zonas históricas (com rendas baratas).

Lisboa, Largo do Camões, foto: Jim Pereira
Na semana passada foi revelado um supremo horror, através de uma reportagem destacada do Boletim dos Amigos do LSD, ui, perdão, do Diário de Notícias. O país, em estado de choque por ter convivido impavidamente com realidade tão ofensiva da dignidade humana, tomou conhecimento de situações mais horríficas que o genocídio médio. Uma carnificina – declarou-se apropriadamente.

Houve manifestação contra a carnificina e tudo, com grande apoio do BE. O vereador Ricardo Robles participou. Tinha ‘riot’ no nome – na verdade é assunto para levar qualquer um a pegar em armas. Inteligentemente (aspas) escolheram protestar na Almirante Reis, avenida que tudo aquilo que repugna a esta boa malta reanimou de coma profundo.

(De seguida vou aludir a alguns casos descritos na reportagem, pelo que, caso o leitor esteja desconhecedor do seu conteúdo, sugiro que vá buscar meia tablete de ansiolíticos para acompanhar a leitura da galeria de horrores. É bem provável que necessite de lhe dar uso.)

Veja bem o leitor. Um homem, por causa do fim do seu arrendamento anterior, teve de mudar de casa do Saldanha para os Olivais. Do Saldanha para os Olivais. Quem sobrevive a semelhante provação? Imaginam o balúrdio em psicoterapia que esta pessoa, compreensivelmente traumatizada, irá gastar para o resto da sua vida?

Ana Benavente, senhora importante que até fez parte de um governo socialista, também viu o arrendamento da sua casa terminado. E não é que teve de mudar para uma casa, ok, ok, bem arranjada, mas que não é casa de ricos? Só um sub-humano tolera viver bem no centro de Lisboa por mil euros numa casa de classe média. E os mafarricos dos senhorios que pedem informações para garantir que os inquilinos têm capacidade de pagar as rendas? Que ganância. Como se não tivessem obrigação de disponibilizar a sua propriedade gratuitamente.

Mais um caso. Uma família que morou no Chiado a pagar 600€ até há pouco foi morar para Campo de Ourique (zona nobre e central) a pagar 800€. (Já desmaiou?)

Bom, fico por aqui. Temo pela saúde dos meus leitores. Em todo o caso, penso que todos concordamos que estas situações são gravíssimas. Muito mais graves, por exemplo, que a incúria e incompetência grosseira da resposta do governo aos fogos florestais do ano passado, com o bonito número de 112 mortos, cujo último relatório o DN tão suavemente noticiou.

Percebe-se. Qualquer jornal tem direito a escolher entre reportar e destacar as carnificinas verdadeiras ou as carnificinas inventadas.

É tudo tão ridículo que nem se sabe se os ativistas de esquerda têm vontade deliberada de fazer figuras apalhaçadas. Talvez para desviar a atenção (à conta de tanta gargalhada) do (des)governo, com o justificado sururu do relatório dos fogos de outubro ou o alinhamento tácito com Putin contra as decisões da UE e do nosso mais antigo aliado. Ou se é a tradicional aldrabice bloquista e para-bloquista de empolar um meio problema, apresentando-o como quase crise de regime, para assim esmagar mais a livre iniciativa e os rendimentos de muitas famílias que contam com as rendas para o orçamento mensal – e, sempre, estatizar a sociedade.
Percebo que as pessoas se afeiçoem às casas e lhes custe sair. Também ninguém gosta de pagar mais pelo que dantes pagava muito pouco. Mas não espanta que os inimigos da propriedade privada e da livre iniciativa provoquem chavascal e manifestações por rendas de menos de mil euros em casas boas em zonas recomendáveis.

Faço só alguns apontamentos.

Primeiro. Que esquerda parvenue e de horizontes pequenos. Passei boa parte da minha vida a atravessar Lisboa (no extremo norte da cidade) para ir diariamente para o Lumiar, primeiro para o colégio, depois para o CUPAV, muitas vezes para ir para casa de amigos ou namorar. Para que percam todo o respeito por mim, declaro ainda que sempre tive amigos vivendo em Benfica e Telheiras. Ou (é o descalabro) residentes na Portela de Sacavém, bairro moda nos anos oitenta, malgrado estar situado já no concelho de Loures. Lisboa não é sequer uma cidade grande.

Segundo. Aparentemente há quem de esquerda não saiba, mas nos subúrbios já vive muita gente licenciada, de classe média, que trabalha em Lisboa, com filhos e horários para cumprir. Alguns preferem. Gostam de ter mais espaço, casas mais baratas (logo mais dinheiro para férias, por exemplo), menor rebuliço, proximidade de praia, o que seja.

É delicioso perceber que para alguma esquerda viver nos subúrbios (todos eles provavelmente bairros de lata ou sucedâneos) é bom só para a arraia miúda, que a casta superior dos funcionários público e da alegada intelectualidade tem de viver nas zonas históricas lisboetas (com obras a cargo do proprietário e rendas baratas, claro).

Por outro lado, há também muito quem viva em Lisboa e trabalhe nos concelhos circundantes (eu, por exemplo, tenho o escritório a vinte e tal quilómetros). Não é nenhum drama.

Terceiro. Foi divertido ver a direita regionalista do twitter alinhar com este drama indizível alinhavado pela esquerda.

Quarto. As cidades são realidades dinâmicas. É comum as zonas periféricas tornarem-se interessantes e culturalmente vivas precisamente por, não estando em voga e sendo mais baratas, viverem um influxo de sangue novo das pessoas à procura de rendas mais baixas. Em seguida valorizam.

Quinto. E termino. Este clamor com as rendas caras em Lisboa é um retrato da nossa esquerda. Paroquial – uma cidade pequena como Lisboa é demasiado grande para eles. Sem recursos psicológicos para responder às realidades mais simples da vida – ter de se deslocar uns tantos quilómetros é uma provação debilitante. Alienada da realidade – não sabe que há vida além do centro mais curto de Lisboa. Imobilista e reacionária – as dinâmicas de mudança deixam-nos apavorados e congeminam sobretudo para suprimi-las. Explica muita coisa.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador, 28-3-3028

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