sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] O Colecionador de insetos

Aparecido Raimundo de Souza

RICARDO NAMORAVA LUÍZA há quase seis meses. Resolveu que chegara a hora de levá-la para conhecer seu apartamento. Como morava sozinho fez os preparativos necessários antes, e, depois de tudo nos conformes, foi até a faculdade no Largo São Francisco, onde ela estudava e, no caminho, fez o convite.

A jovem aceitou de imediato. Depois de uma breve pausa na cozinha, para um lanche, ambos seguiram direto para um dos três quartos existentes no duplex. A moça ficou estupefata e fez uma careta de arrepio assim que o rapaz abriu a porta do primeiro cômodo e acendeu a luz.
- Nossa, Ri, que loucura!
- Meu pequeno mundo. Seja bem-vinda a ele.

- Que viagem. Quer me explicar essa sua paranoia?
- Não necessariamente uma, mas um hobby. Meu hobby.
- Hobby?
- Perfeitamente.  Entre. Não tenha medo.
Luíza deu um passo e estancou. Estava temerosa. Suas mãos tremiam.

- Meu Deus, Ri.
- Fique calma. Vá em frente e olhe.
A moça aquiesceu.
- O quê?! 
- Relaxe. É só um casalzinho de centopéias.

Luíza abraçou o namorado com força, como se temesse ser atacada a qualquer momento.
- Só um casalzinho? Eu diria, por sinal, assustadores. Com todas essas pernas chega a me dar arrepios.
- Essa mais vermelhinha é a fêmea. Tem noventa e uma pernas. Vem do subfilo Myriapoda.
- Até o nome causa asco. Me responda amor. Se somarmos todas elas, digo, todas as perninhas, acaso chegaríamos a cento e oitenta e duas?
- Não exatamente, amor. O número de pares é sempre ímpar e por isso, nenhum possui exatamente as cem.
- Conheço esses troços asquerosos por outros nomes.

- Quais?
- Lacraias.
- Na verdade as pessoas dão nomes errados. O certo seria quilópode. Os quilópodes são animais de rápida locomoção.
- Animais?

- Exatamente.
- E, ao contrário do que a galera imagina, não se enrolam.
Para afastar o medo a moça fez uma piada e se abriu num sorriso franco.
- Quer dizer que dariam excelentes advogadas?
- Se pudessem ingressar na São Francisco, com certeza.

Completamente refeita do medo, Luíza se sentiu mais à vontade.
- Uau! Essas aqui eu amo de paixão.
- Essas aí são as Vanessas Atalantas.
- O que? Como? Conheço por borboletas.
- É um dos muitos nomes científicos dessas gracinhas, amor. Tem a Parnassius apollos, Dryas Julia, Nymphalis antiopa etc. etc...

- Não importa os nomes científicos. Só sei que enfeitam as paredes, trazem sorte.
- Qual o quê! Quem costuma trazer sorte, segundo a crença popular é a Esperança – ou melhor – um espécime chamado Tettigoniidae.
- Você foi a fundo nessa loucura... Parabéns.

- Sempre vou. E obrigado pelos parabéns. Agora passemos para o segundo quarto.
Passaram.
- Olhe para esse casal de mosquitos.
- Sim?
- Não são lindos?
- São os da dengue?
- Não. Aqueles são os Aedes aegypti. Esses aqui são os Anopheles darling.

- Qual a diferença, amor? Não são todos mosquitos?
- Negativo. Só os membros Aedes aegyptis transmitem a dengue.
- E esses?
- A Malária.
- São da Malásia?

O namorado riu com vontade.
- Nada a ver, meu amor. Os Anopheles darling nascem e se proliferam em rios de águas limpas. O nosso Tiete, que atravessa São Paulo, estaria de fora...
- Bom sinal – concordou Luiza também se abrindo em uma gargalhada gostosamente estonteante. - Ao menos eles vêm de uma família que toma banho. Ei, amor, você tem pulgas?

Ricardo fez uma cara feia.
 - Está me chamando de cachorro?
- Bobinho! Estou fazendo referência à sua coleção, amor.
- Ah! desculpe. Foi mal, princesa. Viajei. Aqui. Esta é a ctenocephalides feliz, feliz, ou vulgarmente a “pulga dos gatos”.

Luíza se derramou novamente numa estrondosa gargalhada. Chegou a chorar de tanto que contraiu os músculos faciais.
- Qual é a graça? Posso saber?
- É por isso que elas são alegres e divertidas?
- Desenha. A ficha não caiu!...

- As pulgas, amor. Estão duplamente felizes por causa dos gatos.
- Engraçadinha. Vamos adiante. Quero mostrar os ratos.
- Passo. Pula esses...
- Não gosta de ratos?
- Vejo todos os dias na televisão.

Entraram no terceiro quarto. Enquanto corria a mão em busca do interruptor...
- Ratos na televisão? Você disse ratos na televisão?
- Sim, amor. Quando falam de Brasília. Lá esses bichos são vistos às pencas, por todas as partes. Uma rataria de fazer inveja...
- Ratazana...
- Que seja amor. Ratazana, rataria... Se não se incomoda, prefiro rataria. Pelo menos não ofendo os roedores, apesar de não gostar deles.

- Ok. Respeito a sua opinião. Bem pensado. Os ratinhos aqui ficariam fulas da vida. Venha, chegue mais perto. Não precisa ter medo. Esses são inofensivos.
- Inofensivos? Lembra do que aconteceu em Nova Zelândia? Ratos famintos causaram pane nas telecomunicações.

- Recordo dos fatos!
- Eles roeram os cabos de fibra ótica.
- Havia um motivo...
- Havia?  Qual?
- Eram ratos burros, tapados, sem perspectivas de vida.

- Ratos tapados, Ri?
- Sim, amor. Ratos estudados frequentam faculdade, passam anos lustrando os bancos, colam grau... E depois de formados, ainda causam um tremendo frisson...
- Isso que está me falando é verdade?

- Sim, amor. A mais pura. Só aqui em nosso lindo país, as autoridades constituídas não se curvam a essa realidade.  Perceba que até o próprio governo federal não dá valor aos ratos. E quando falo em ratos me refiro exatamente aos tapados, ou seja, à classe média baixa. Os ratos pobres, os ratos humildes, os ratos sem eira nem beira. Sãos os Mus musculus. Por isso proliferam como um ajuntamento de gafanhotos e se alastram por todos os estados da federação.

- Mas...
- Concluindo, amor, os ratos capacitados e inteligentes, os diplomados como os nossos parlamentares, os nossos ministros, senadores, são poucos. Contudo, embora essa elite seja a minoria, consegue fazer frente e se opor aos demais, exatamente em decorrência do diploma, da boa visão de tudo, da picardia e da conversa fiada, e o mais importante: obviamente pôr ter sentado os fundilhos dos traseiros em bancos de boas universidades. Aqui faço referência aos Peromyscus Leucopus.

- Então você concorda com o que eu falei? No Planalto Central são vistos às pencas?
- Não só concordo como assino embaixo. Os ratos são uma praga, principalmente os que habitam os porões do STF. Esses são os poderosos Peromyscus Leucopus. Roedores legítimos. Veja alguns: Dias Toffoli, Luiz Fux, Celso de Melo...
- E o rato Marco Aurélio?
- Um roedor desgraçado. Todavia, diferente...

- Como assim, amor?
- Ele é decano. Além de decano, velho, ultrapassado, rói por baixo dos panos... Isso falando apenas no presente do indicativo.
- Entendi. Não assimilei o de. De... De o quê?
- Decano. Em outras palavras. O rato que além de roer, deu o cano.  
- Amor, será que é por essa razão que tem gente que fala que a Capital do Brasil é uma enorme ratoeira?
- Por certo, amor.

Ricardo fez uma breve pausa.
- Para que você entenda melhor, vou explicar mais pausadamente. Os Mus músculos são os ratos inofensivos. Os cientistas os chamam de ratos Zé Povinho. Ou banda dos camundongos sofredores, ou murídeos. Aqueles outros são os da linhagem dos poderosos ou grosso modo, os roedores inveterados, os ditosos, os soberanos, os afortunados, os bens nascidos, os autocratas. Todas essas infâmias fazem parte da tribo dos Peromyscus Leucopus. Dizem os ratólogos que os gatos e os bichanos etc., etc., e tal passam longe deles. Esses, meu amor, para extermínio, só com meia dúzia de balas na cabeça de cada um. E mesmo assim...
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Sertãozinho (Ribeirão Preto), interior de São Paulo. 20-12-2019

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