Aparecido Raimundo de Souza
RICARDO NAMORAVA LUÍZA há quase seis meses. Resolveu que chegara a hora de levá-la para
conhecer seu apartamento. Como morava sozinho fez os preparativos necessários
antes, e, depois de tudo nos conformes, foi até a faculdade no Largo São
Francisco, onde ela estudava e, no caminho, fez o convite.
A jovem aceitou de imediato. Depois de uma breve pausa na cozinha, para
um lanche, ambos seguiram direto para um dos três quartos existentes no duplex.
A moça ficou estupefata e fez uma careta de arrepio assim que o rapaz abriu a
porta do primeiro cômodo e acendeu a luz.
- Nossa, Ri, que loucura!
- Meu pequeno mundo. Seja bem-vinda a ele.
- Que viagem. Quer me explicar essa sua paranoia?
- Não necessariamente uma, mas um hobby. Meu hobby.
- Hobby?
- Perfeitamente. Entre. Não tenha
medo.
Luíza deu um passo e estancou. Estava temerosa. Suas mãos tremiam.
- Meu Deus, Ri.
- Fique calma. Vá em frente e olhe.
A moça aquiesceu.
- O quê?!
- Relaxe. É só um casalzinho de centopéias.
Luíza abraçou o namorado com força, como se temesse ser atacada a
qualquer momento.
- Só um casalzinho? Eu diria, por sinal, assustadores. Com todas essas
pernas chega a me dar arrepios.
- Essa mais vermelhinha é a fêmea. Tem noventa e uma pernas. Vem do subfilo
Myriapoda.
- Até o nome causa asco. Me responda amor. Se somarmos todas elas, digo,
todas as perninhas, acaso chegaríamos a cento e oitenta e duas?
- Não exatamente, amor. O número de pares é sempre ímpar e por isso,
nenhum possui exatamente as cem.
- Conheço esses troços asquerosos por outros nomes.
- Quais?
- Lacraias.
- Na verdade as pessoas dão nomes errados. O certo seria quilópode. Os
quilópodes são animais de rápida locomoção.
- Animais?
- Exatamente.
- E, ao contrário do que a galera imagina, não se enrolam.
Para afastar o medo a moça fez uma piada e se abriu num sorriso franco.
- Quer dizer que dariam excelentes advogadas?
- Se pudessem ingressar na São Francisco, com certeza.
Completamente refeita do medo, Luíza se sentiu mais à vontade.
- Uau! Essas aqui eu amo de paixão.
- Essas aí são as Vanessas Atalantas.
- O que? Como? Conheço por borboletas.
- É um dos muitos nomes científicos dessas gracinhas, amor. Tem a
Parnassius apollos, Dryas Julia, Nymphalis antiopa etc. etc...
- Não importa os nomes científicos. Só sei que enfeitam as paredes,
trazem sorte.
- Qual o quê! Quem costuma trazer sorte, segundo a crença popular é a
Esperança – ou melhor – um espécime chamado Tettigoniidae.
- Você foi a fundo nessa loucura... Parabéns.
- Sempre vou. E obrigado pelos parabéns. Agora passemos para o segundo
quarto.
Passaram.
- Olhe para esse casal de mosquitos.
- Sim?
- Não são lindos?
- São os da dengue?
- Não. Aqueles são os Aedes aegypti. Esses aqui são os Anopheles darling.
- Qual a diferença, amor? Não são todos mosquitos?
- Negativo. Só os membros Aedes aegyptis transmitem a dengue.
- E esses?
- A Malária.
- São da Malásia?
O namorado riu com vontade.
- Nada a ver, meu amor. Os Anopheles darling nascem e se proliferam em
rios de águas limpas. O nosso Tiete, que atravessa São Paulo, estaria de
fora...
- Bom sinal – concordou Luiza também se abrindo em uma gargalhada
gostosamente estonteante. - Ao menos eles vêm de uma família que toma banho.
Ei, amor, você tem pulgas?
Ricardo fez uma cara feia.
- Está me chamando de cachorro?
- Bobinho! Estou fazendo referência à sua coleção, amor.
- Ah! desculpe. Foi mal, princesa. Viajei. Aqui. Esta é a ctenocephalides
feliz, feliz, ou vulgarmente a “pulga dos gatos”.
Luíza se derramou novamente numa estrondosa gargalhada. Chegou a chorar
de tanto que contraiu os músculos faciais.
- Qual é a graça? Posso saber?
- É por isso que elas são alegres e divertidas?
- Desenha. A ficha não caiu!...
- As pulgas, amor. Estão duplamente felizes por causa dos gatos.
- Engraçadinha. Vamos adiante. Quero mostrar os ratos.
- Passo. Pula esses...
- Não gosta de ratos?
- Vejo todos os dias na televisão.
Entraram no terceiro quarto. Enquanto corria a mão em busca do
interruptor...
- Ratos na televisão? Você disse ratos na televisão?
- Sim, amor. Quando falam de Brasília. Lá esses bichos são vistos às
pencas, por todas as partes. Uma rataria de fazer inveja...
- Ratazana...
- Que seja amor. Ratazana, rataria... Se não se incomoda, prefiro
rataria. Pelo menos não ofendo os roedores, apesar de não gostar deles.
- Ok. Respeito a sua opinião. Bem pensado. Os ratinhos aqui ficariam
fulas da vida. Venha, chegue mais perto. Não precisa ter medo. Esses são
inofensivos.
- Inofensivos? Lembra do que aconteceu em Nova Zelândia? Ratos famintos
causaram pane nas telecomunicações.
- Recordo dos fatos!
- Eles roeram os cabos de fibra ótica.
- Havia um motivo...
- Havia? Qual?
- Eram ratos burros, tapados, sem perspectivas de vida.
- Ratos tapados, Ri?
- Sim, amor. Ratos estudados frequentam faculdade, passam anos lustrando
os bancos, colam grau... E depois de formados, ainda causam um tremendo
frisson...
- Isso que está me falando é verdade?
- Sim, amor. A mais pura. Só aqui em nosso lindo país, as autoridades
constituídas não se curvam a essa realidade.
Perceba que até o próprio governo federal não dá valor aos ratos. E
quando falo em ratos me refiro exatamente aos tapados, ou seja, à classe média
baixa. Os ratos pobres, os ratos humildes, os ratos sem eira nem beira. Sãos os
Mus musculus. Por isso proliferam como um ajuntamento de gafanhotos e se
alastram por todos os estados da federação.
- Mas...
- Concluindo, amor, os ratos capacitados e inteligentes, os diplomados
como os nossos parlamentares, os nossos ministros, senadores, são poucos.
Contudo, embora essa elite seja a minoria, consegue fazer frente e se opor aos
demais, exatamente em decorrência do diploma, da boa visão de tudo, da picardia
e da conversa fiada, e o mais importante: obviamente pôr ter sentado os
fundilhos dos traseiros em bancos de boas universidades. Aqui faço referência
aos Peromyscus Leucopus.
- Então você concorda com o que eu falei? No Planalto Central são vistos
às pencas?
- Não só concordo como assino embaixo. Os ratos são uma praga,
principalmente os que habitam os porões do STF. Esses são os poderosos
Peromyscus Leucopus. Roedores legítimos. Veja alguns: Dias Toffoli, Luiz Fux,
Celso de Melo...
- E o rato Marco Aurélio?
- Um roedor desgraçado. Todavia, diferente...
- Como assim, amor?
- Ele é decano. Além de decano, velho, ultrapassado, rói por baixo dos
panos... Isso falando apenas no presente do indicativo.
- Entendi. Não assimilei o de. De... De o quê?
- Decano. Em outras palavras. O rato que além de roer, deu o cano.
- Amor, será que é por essa razão que tem gente que fala que a Capital do
Brasil é uma enorme ratoeira?
- Por certo, amor.
Ricardo fez uma breve pausa.
- Para que você entenda melhor, vou explicar mais pausadamente. Os Mus
músculos são os ratos inofensivos. Os cientistas os chamam de ratos Zé Povinho.
Ou banda dos camundongos sofredores, ou murídeos. Aqueles outros são os da
linhagem dos poderosos ou grosso modo, os roedores inveterados, os ditosos, os
soberanos, os afortunados, os bens nascidos, os autocratas. Todas essas
infâmias fazem parte da tribo dos Peromyscus Leucopus. Dizem os ratólogos que
os gatos e os bichanos etc., etc., e tal passam longe deles. Esses, meu amor,
para extermínio, só com meia dúzia de balas na cabeça de cada um. E mesmo
assim...
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Sertãozinho (Ribeirão
Preto), interior de São Paulo. 20-12-2019
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