Aparecido Raimundo de Souza
DE REPENTE essa gatinha manhosa aparece na nossa frente. De corpo escultural, olhar
pecaminoso, lábios sensuais e com gosto de mel. É assim mesmo que ela pinta do
nosso lado, saída, até agora, não se sabe de onde. No fundo, uma linda mulher,
todavia, um estranho ser forasteiro. Chega de mansinho, pacata, serena,
sossegada, sem dizer nada. Sem bater na porta, sem avisar que está vindo. Se faz presente, viva, pulsante, e pior, sem
dar um telefonema, sem mandar um e-mail, um WhatsApp. Sorrateira se aproxima e
simplesmente nos pega distraídos, alheados, absortos, despreparados, esquecidos
de nós mesmos, tipo assim, de calças curtas.
Foi assim. Vapt-vupt. Sem tirar nem acrescentar. De forma sorumbática e
taciturna, com meu padrasto Jorge. Ele se levantou, junto com mamãe, como todos
os dias, e, como sempre inalteradamente fizera durante os vinte anos em que
viveram juntos. Enquanto mamãe tomava banho, ele lavava a louça do dia anterior
que ficava na pia da cozinha, depois se sentava no sofá da sala, no seu lugarzinho
predileto, de frente para a televisão para assistir a primeira edição do jornal
da tevê. Quando mamãe saia do chuveiro, ele pedia que ela preparasse um café
reforçado. Dessa forma rápida e rasteira, se sucedeu, no dia em que nos deixou
de vez.
Ela mal acabara de coar a bebida e de esquentar os pães no forno. Lá
mesmo, da sala, ele deu linha à pipa e bateu asas. Não deu um sinal, não avisou
ninguém, não deixou um bilhete de despedida, nem chamou a companheira de tantos
janeiros para lhe dar um último beijo, ou um derradeiro adeus. Simplesmente viu a mulher encantada entrar na
sala e sorrir para ele. Sorrir lindamente saltitante e alegre, com uma rosa
vermelha numa das mãos. Jorge apoiou a cabeça no encosto do sofá, e, como um
passarinho que encontra a porta da gaiola aberta, se deixou levar.
Fechou-se num acalanto profundo e arrefeceu num silêncio imenso e
constrangedor. Um silêncio denso e pesado que, de tão tétrico, se acresceu a
outros aparentados. Mamãe, coitada, à hora em que caiu a ficha e deu conta do
inevitável, do que realmente acontecia, começou a gritar, desesperada,
acordando, sobressaltada, os demais que estavam, ainda, entregues aos abraços
do descanso. Não foi diferente com meu avô João. Vovô João partiu com a mesma
bonitona de vestidinho curto, deixando entrever a calcinha azul entre as pernas
bem torneadas.
Saiu com ela, alegre, de braços dados, depois de trocarem algumas
palavras no lugar que mais gostava de estar. Sentado confortavelmente num
banquinho de madeira tosca debaixo de um velho pé de carvalho centenário, de
frente para a margem de um riozinho que corria a alguns metros da casa
principal da fazenda. Vovó Marta, da cozinha, pela janela que dava para a
enorme varanda, enquanto preparava o primeiro dejejum, costumava vigiá-lo.
Naquele dia, entretanto, notou que ele estava muito tempo numa posição
só, estático, imóvel, como se meditasse o contemplativo à sua volta, sem se
mover. Geralmente, ao tomar assento, vovô João parecia estar falando com
alguém. Tinha mania de gesticular com as mãos e mostrar alguma coisa imaginária
para as bandas do pasto enorme que se perdia de vista. Diante da quietude
estranha, vovó chamou por ele várias vezes, mas o bom velhinho não respondeu:
vovó pensou, então, no pior.
Ao acorrer, junto com a Maria Preta, que ajudava nos afazeres do dia a
dia, se deparou, realmente, com o desastroso consumado. A dama misteriosa havia
se antecipado e chegado primeiro que todos. Fatal! Tio Alfredo, irmão de vovô,
igualmente, se pôs a viajar sem dar sinais de que pretendia fazê-lo tão cedo.
Depois de guardar o carro, e, sem se afastar de dentro da garagem. Encontraram
o corpo do pobre infeliz meia hora depois, caído ao lado da porta que levava ao
interior da residência.
O fato é que deixou um vazio imenso por todos os cômodos. A tia Marília e
meus primos Edinho, Mônica Luciana e Aretha, igualmente numa situação de
melancolia e desgosto indescritíveis. Quem mais sentiu a perda do tio Alfredo,
com certeza, a caçula dos quatro filhos que teve com a tia. Faço referência a
Aretha. Pôr quase uma semana a minha prima se trancou no quarto sem comer e
beber. Não houve viva alma que conseguisse demovê-la da ideia de abandonar os
retratos do pai, guardados, com carinho, numa caixinha de sapatos.
Essa misteriosa senhora ou (seria senhorita?!) é assim: sagaz,
excêntrica, desconcertante, astuta, hábil e maquiavélica em enganar ricos e
pobres. Ardilosa, atemorizante, malvada, inimiga, dona de uma frieza acima de
qualquer suspeita. Sabe como ninguém
destruir as fortalezas de sentimentos, os alicerces de afetos e as paredes
sólidas das emoções profundas que existem dentro de cada um de nós. Possui uma
clareza em seus atos, que espanta. É tão resplandecente a sua presença em nosso
meio, que cega os olhos de quem a vê. Torna-se, ao mesmo tempo, clara e
transparente, radiosa e febricitante para aqueles a quem busca para seguir com
ela na grande viagem sem volta. No passeio em que não há discussão, tampouco
bate boca, meios termos ou retorno.
É tão concisa na sua determinação quanto precisa na definição do que quer
e deseja. Com ela não há o minuto seguinte, o deixar para depois, o voltar
amanhã, ou o mais tarde. É agora e pronto.
Sua vontade prevalece sempre, haja o que houver e fim de papo. Sua
lucidez espanta e atemoriza como as suas travessuras e diabruras atormentam
através dos séculos. Essa moçoila de cabelos compridos e soltos ao vento tira,
na verdade, o sono e a tranquilidade de muita gente. Mexe com estudiosos e
doutores do mundo inteiro. Nesse pé, até hoje, ninguém teve o prazer de vir a
público e gritar, aos quatro cantos do universo, que conseguiu decifrar os seus
mistérios.
Talvez eu consiga, não sei... Talvez eu objetive atinar com o secreto,
com o oculto, com o segredo, claro, no dia que chegar a minha vez de me encontrar
e não só me encontrar, de embarcar com ela, a esfuziante gatinha manhosa, para
visitar rincões distantes, conhecer cidades perdidas, rever pessoas que não via
ha tempos. Beijar, apertar mãos, abraçar criaturas no imenso do fantástico, de
passear pôr ruas e avenidas cercadas de anjos ou de topar, quem sabe, numa
esquina de nuvens, ou numa praça cheia de flores multicoloridas, o velho Jorge,
o vovô João, ou o tio Alfredo, ou, quem mais, pôr ventura, tiver partido com
essa jovem ambígua e insondável antes de mim...
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de Vila
Velha, no Espírito Santo. 6-12-2019
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