Aparecido Raimundo de Souza
EU TINHA LIGADO PARA todos os números das amigas que ela me passara para saber a respeito dos
seus empregos anteriores e, claro, da sua vida pessoal e nada. Ninguém retornou
as minhas ligações. Em razão disso, eu estava brabo, invocado, pê da vida,
enfurecido, colérico, tudo porque além de não haver encontrado ninguém que me
desse um feedback de suas ocupações, nunca a tinha visto pessoalmente. Como
dispunha do endereço resolvi ir pessoalmente ter com a criatura em sua residência.
Todavia, embora indagasse daqui, dali, percebi quase final do dia, andara às
escuras, às apalpadelas, tentando achar a bendita rua de sua casa e o ponto
indicado como referência. Qual o quê! Nenhuma coisa nem outra. Me estapeei por
gastar sapato e tempo para cima e para baixo, marchando a esmo, como se tivesse
preso dentro de uma combinação intrincada de passagens e corredores que
desembocavam sempre em lugar nenhum.
Cansado, chateado, dei meia volta, decidido a ir embora. Sumir de vez.
Apagar da minha cabeça o nome da infeliz e tudo o mais que estivesse ligado
àquela filha de uma égua. Esquecer, pois, que ela nunca existiu no meu agora.
Foi quando estanquei os passos e resolvi jogar a última carta que me restava na
manga. A derradeira. Se essa falhasse, se eu voltasse a bater com os burros
n’água, ela que se danasse. O celular dela. Meu Deus, o celular da jovem! Eu
não havia ligado para ele. Quem sabe... Com esse pensamento aflorado, se também
esse recurso longínquo falhasse, então sim, definitivamente jogaria tudo fora,
atiraria meu ódio na primeira lata de lixo que encontrasse pela frente e junto,
seu currículo vitae com tudo de bom que eu havia lido nele. “Menina difícil -,
pensei com meu umbigo -, tinha que ser Brunela”. Para meu espanto, para meu
estarrecimento, a garota atendeu na hora.
Finalmente! Ao ouvir a sua voz, num “alô” melodioso e insinuante, acalmei
a alma, abrandei o coração. Pedi que viesse sem mais delongas ao meu encontro.
“Passei o dia todo à sua cata – gritei, de repente. Estava quase desistindo”.
Lembro que um pouco antes de me conscientizar que não havia ligado para o
telefone celular dela, retornei à loja de uma das pessoas que a indicara a mim.
A Míriam. Pelo adiantado das horas a tal Míriam havia saído mais cedo e
encerrado o expediente. Nem sinal da sujeita. Só me restou à rua, ou melhor, a
esquina e o nome de um barzinho que ela alternativou. O dito estabelecimento ficava perto do seu
logradouro, encostado ao seu bairro. Segui para o local. Fiquei em pé, feito um
poste inanimado, como um menino bobo, à espera da chegada da donzela. Pelo fato
de estar quieto e estático, certamente não demoraria um cachorro passaria e me
batizaria os pés com seu xixi. Achei melhor deixar o xixi e o cachorro de lado
e me ater a adivinhar de onde ela surgiria. “De que banda, de que lado, de que
buraco? Meu Pai, como seria essa encantada?”.
Branca, preta, loira, morena, alta, baixa, feia, bonita, desdentada, simpática,
antipática, chata, meiga, nojenta, dócil, pegajosa, faladeira, bem feita de
rosto, a boca talhada na medida de um sorriso indescritível, dentes perfeitos,
gorda, magra, a bundinha empinada, as pernas tipo Camila Queirós, ou Giovanna
Lancellotti, enfim, um tremendo docinho de coco ou um tribufu de dar medo até
em defunto? Na aspereza do aguardamento, passei a desenhar a Brunela com
pinceladas rápidas e objetivas, no alvoroçado de obter uma imagem do seu
misterioso arquétipo. Nessa doideira, viajei em moldes pagãos, atropelando os
pensamentos que iam e vinham numa velocidade voraz. Seria essa desconhecida
mais uma, ou uma a mais, a pleitear o cargo de secretária, que chegaria aqui,
bateria um papo informal e depois viraria as costas e iria cada um com seus
martírios para nossos cantos de origem carregando os fardos das desilusões e
desencantos?
Não! Dessa vez algo me dizia, aqui dentro do peito, que esse encontro não
seria como os anteriores. Sob o signo da esperança, Brunela chegaria triunfal.
Simplesmente não se esbarraria comigo como manequins desfilando etiquetas
diante de uma vitrina repleta de luzes de néon. Enquanto isso, meu olhar
buscava a sua silhueta em todos os cantos da quase noite que se avizinhava, em
cada rosto, em cada ser que cruzava indo ou vindo, e alimentava uma sensação
dentro de meu ser, como o de uma agonia pesada, anunciada, um incômodo estranho
que machucava de forma traumática. Uma dor forte que se fechava e traçava rumos
indomados na multidão que me ignorava. Em paralelo, meu subconsciente, como que
tentando decifrar uma imagem real e palpável, aproveitava a deixa e criava
expectativas, ou melhor, desenhava abrigos de cores vivas onde agasalhar a sua
presença tão desejada. Esse particular se assemelhava a vislumbrar diante do inusitado,
um quadro raro de Picasso.
Para deleite de meus olhos, para encanto de minha alma, Brunela chegou
num carro branco. O motorista do Uber a deixou na esquina e ela veio de
encontro a mim. Havíamos dado dicas de como estaríamos vestidos para não haver
mais contratempos. Ela olhou, meio que temerosa, e então abriu a porta do banco
traseiro e se pôs a andar em minha direção. Veio vindo, veio vindo, meio
amedrontada, meio “será que devo?”. Quando chegou perto, fiz a pergunta que
sabia óbvia: “Brunela?!”. Um sim vibrou como o som de um teclado ensaiando uma
melodia suave, impregnada de quimeras desconhecidas, famintas de muitas
palavras. No instante seguinte, meu coração se ajoelhou diante da sua beleza.
Estarrecido, eu homem vivido, de muitos anos nas costas, me desmoronei num
labirinto sem volta para alcançar o tamanho do seu esplendor. A satisfação que
corria ligeira, dentro de mim aflorou.
De roldão, saltou, pulou, e encheu de variadas matizes os meus olhos
esbugalhados por conta da sua meiguice. Ali estava finalmente a Brunela, ou as
muitas Brunelas por mim desenhadas: Brunela menina, Brunela flor, Brunela,
rainha, Brunela esperança, Brunela encanto. Igualmente a deusa se transformou
em tenro botão de rosa se abrindo cheio de efeitos especiais, como passarinho
inventado, com penas vermelhas e amarelas, voando no azul do meu infinito e
fazendo refletir no cristal do meu espelho, o fascínio de viajar por sendas
nunca pisadas em busca de horizontes desconhecidos e jamais imaginados. E assim
foi. Tudo aconteceu depois disso, num abrir e piscar de olhos. Ela passou a
trabalhar para mim. Nos meses subsequentes, entre um almoço e outro, uma viagem
aqui, outra acolá, fomos passar a noite num motel. Do quarto desse motel como
minha secretária, para a minha cama, como minha mulher.
Ainda hoje, depois de tantos anos, ainda vislumbro Brunela como a
enxerguei na primeira vez. Apesar do tempo corrido, eu a sinto como naquele
dia, formosa dentro do carro branco, sentada e tímida, meio que assustada,
antes de abrir a porta. Consigo, ainda nesse instante, trazer à tona, como num
desses filmes de curta metragem, o encanto, o mesmo bálsamo da animação poética
que nasceu quando a vi pela primeira vez. Na verdade, Brunela continua com o
toque certo que me agitou a base, a nota musical que harmonizou a minha alma, o
recheio perfeito que guardei a sete chaves, para que ninguém ousasse imaginá-la
como eu a mentalizei assim que lhe coloquei os meus sentidos em alerta. Ela
segue inimitável. Diria, sem medo de
errar, perfeitinha. O vácuo da nossa disparidade de idade é enorme, porém, a
minha Brunela, enlaça o irradiar da juventude no êxtase dos trinta, em
contraste com os meus sessenta e seis, lembrando, outrossim, que a diferença
entre nós, passa, e muito, dos degraus íngremes dos anos que não retroagem.
Entretanto, usque essa lacuna enorme, a sua áurea de brilho intenso
transpira num boom de pratos orquestrais ao tempo em que cria em derredor de
nossas vidas um instante bucólico e único, um prazer pastoril, repleto de expectativas
prontas para explodirem ao menor toque da sua voz. Brunela é como o sol que se
espalha, diria sem medo de errar, se faz vivificante como o alimento divino que
estanca a minha fome. É essa moça de olhar sereno o porvir repleto de sensações
nunca sentidas, de emoções nunca vividas. É poesia de arrebol, uma raríssima
espécie de elo plural ligando o hoje ao super amanhã. É ainda, um clipe de
apetite sentido, meu horizonte bordado por asas aladas à essencialidade do meu
agora dentro de um ontem imperecedouro e perfeito, juntos, colados, grudados,
como o côncavo e o convexo da canção interpretada pelo Roberto. Brunela não é
só Brunela. É mais que um nome ao acaso. É o licor das harpas, o gosto de tudo
temperando vontades.
É a minha amada, sem dúvida alguma, os sons de enfeites melodiando noites
e dias, dias e noites, sonhos de voos distantes e inesquecíveis. É um Domaine
de la Romanée quebrando o próprio mimo da garrafa ao ser aberto. É Fernando
Pessoa declamando poesias corpóreas. É a Mariza cantando “Quem me dera” numa
distância sempre pujante do meu resgate memorável, bem ainda, no pé do ouvido,
no gostoso do nosso cantinho a vitalidade que me mantém a todo vapor. É Brunela
a mulher, a criança grande, a estrela guia das minhas brincadeiras. Brunela é ainda como os meus natais
inesquecíveis. Os meus vinte e cinco de dezembro passados presentes e
futuros... Todos eles recheados com flocos de neve, e mais que tudo: Brunela é
o meu agora, o meu hoje, o meu amanhã. A minha estrada, a minha razão de querer
continuar de mãos dadas, olhando na mesma direção a ser vivenciada. Sobretudo,
Brunela é o eco do meu berro desesperado na garganta clamando indubitavelmente
por seu amor.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de
Sertãozinho (Ribeirão Preto), interior de São Paulo. 24-12-2019
Colunas anteriores:
Você, Apa, a cada dia me surpreende. Que lindo texto. Já o espalhei aos nossos contatos. Amei o "licor das harpas, o gosto de tudo temperando saudades".
ResponderExcluirCarina
Ca
(de Sertãozinho, Ribeirão Preto, São Paulo)