terça-feira, 24 de dezembro de 2019

[Aparecido rasga o verbo] Distância de resgate

Aparecido Raimundo de Souza

EU TINHA LIGADO PARA todos os números das amigas que ela me passara para saber a respeito dos seus empregos anteriores e, claro, da sua vida pessoal e nada. Ninguém retornou as minhas ligações. Em razão disso, eu estava brabo, invocado, pê da vida, enfurecido, colérico, tudo porque além de não haver encontrado ninguém que me desse um feedback de suas ocupações, nunca a tinha visto pessoalmente. Como dispunha do endereço resolvi ir pessoalmente ter com a criatura em sua residência. Todavia, embora indagasse daqui, dali, percebi quase final do dia, andara às escuras, às apalpadelas, tentando achar a bendita rua de sua casa e o ponto indicado como referência. Qual o quê! Nenhuma coisa nem outra. Me estapeei por gastar sapato e tempo para cima e para baixo, marchando a esmo, como se tivesse preso dentro de uma combinação intrincada de passagens e corredores que desembocavam sempre em lugar nenhum. 

Cansado, chateado, dei meia volta, decidido a ir embora. Sumir de vez. Apagar da minha cabeça o nome da infeliz e tudo o mais que estivesse ligado àquela filha de uma égua. Esquecer, pois, que ela nunca existiu no meu agora. Foi quando estanquei os passos e resolvi jogar a última carta que me restava na manga. A derradeira. Se essa falhasse, se eu voltasse a bater com os burros n’água, ela que se danasse. O celular dela. Meu Deus, o celular da jovem! Eu não havia ligado para ele. Quem sabe... Com esse pensamento aflorado, se também esse recurso longínquo falhasse, então sim, definitivamente jogaria tudo fora, atiraria meu ódio na primeira lata de lixo que encontrasse pela frente e junto, seu currículo vitae com tudo de bom que eu havia lido nele. “Menina difícil -, pensei com meu umbigo -, tinha que ser Brunela”. Para meu espanto, para meu estarrecimento, a garota atendeu na hora.

Finalmente! Ao ouvir a sua voz, num “alô” melodioso e insinuante, acalmei a alma, abrandei o coração. Pedi que viesse sem mais delongas ao meu encontro. “Passei o dia todo à sua cata – gritei, de repente. Estava quase desistindo”. Lembro que um pouco antes de me conscientizar que não havia ligado para o telefone celular dela, retornei à loja de uma das pessoas que a indicara a mim. A Míriam. Pelo adiantado das horas a tal Míriam havia saído mais cedo e encerrado o expediente. Nem sinal da sujeita. Só me restou à rua, ou melhor, a esquina e o nome de um barzinho que ela alternativou.  O dito estabelecimento ficava perto do seu logradouro, encostado ao seu bairro. Segui para o local. Fiquei em pé, feito um poste inanimado, como um menino bobo, à espera da chegada da donzela. Pelo fato de estar quieto e estático, certamente não demoraria um cachorro passaria e me batizaria os pés com seu xixi. Achei melhor deixar o xixi e o cachorro de lado e me ater a adivinhar de onde ela surgiria. “De que banda, de que lado, de que buraco? Meu Pai, como seria essa encantada?”.

Branca, preta, loira, morena, alta, baixa, feia, bonita, desdentada, simpática, antipática, chata, meiga, nojenta, dócil, pegajosa, faladeira, bem feita de rosto, a boca talhada na medida de um sorriso indescritível, dentes perfeitos, gorda, magra, a bundinha empinada, as pernas tipo Camila Queirós, ou Giovanna Lancellotti, enfim, um tremendo docinho de coco ou um tribufu de dar medo até em defunto? Na aspereza do aguardamento, passei a desenhar a Brunela com pinceladas rápidas e objetivas, no alvoroçado de obter uma imagem do seu misterioso arquétipo. Nessa doideira, viajei em moldes pagãos, atropelando os pensamentos que iam e vinham numa velocidade voraz. Seria essa desconhecida mais uma, ou uma a mais, a pleitear o cargo de secretária, que chegaria aqui, bateria um papo informal e depois viraria as costas e iria cada um com seus martírios para nossos cantos de origem carregando os fardos das desilusões e desencantos?

Não! Dessa vez algo me dizia, aqui dentro do peito, que esse encontro não seria como os anteriores. Sob o signo da esperança, Brunela chegaria triunfal. Simplesmente não se esbarraria comigo como manequins desfilando etiquetas diante de uma vitrina repleta de luzes de néon. Enquanto isso, meu olhar buscava a sua silhueta em todos os cantos da quase noite que se avizinhava, em cada rosto, em cada ser que cruzava indo ou vindo, e alimentava uma sensação dentro de meu ser, como o de uma agonia pesada, anunciada, um incômodo estranho que machucava de forma traumática. Uma dor forte que se fechava e traçava rumos indomados na multidão que me ignorava. Em paralelo, meu subconsciente, como que tentando decifrar uma imagem real e palpável, aproveitava a deixa e criava expectativas, ou melhor, desenhava abrigos de cores vivas onde agasalhar a sua presença tão desejada. Esse particular se assemelhava a vislumbrar diante do inusitado, um quadro raro de Picasso. 

Para deleite de meus olhos, para encanto de minha alma, Brunela chegou num carro branco. O motorista do Uber a deixou na esquina e ela veio de encontro a mim. Havíamos dado dicas de como estaríamos vestidos para não haver mais contratempos. Ela olhou, meio que temerosa, e então abriu a porta do banco traseiro e se pôs a andar em minha direção. Veio vindo, veio vindo, meio amedrontada, meio “será que devo?”. Quando chegou perto, fiz a pergunta que sabia óbvia: “Brunela?!”. Um sim vibrou como o som de um teclado ensaiando uma melodia suave, impregnada de quimeras desconhecidas, famintas de muitas palavras. No instante seguinte, meu coração se ajoelhou diante da sua beleza. Estarrecido, eu homem vivido, de muitos anos nas costas, me desmoronei num labirinto sem volta para alcançar o tamanho do seu esplendor. A satisfação que corria ligeira, dentro de mim aflorou.

De roldão, saltou, pulou, e encheu de variadas matizes os meus olhos esbugalhados por conta da sua meiguice. Ali estava finalmente a Brunela, ou as muitas Brunelas por mim desenhadas: Brunela menina, Brunela flor, Brunela, rainha, Brunela esperança, Brunela encanto. Igualmente a deusa se transformou em tenro botão de rosa se abrindo cheio de efeitos especiais, como passarinho inventado, com penas vermelhas e amarelas, voando no azul do meu infinito e fazendo refletir no cristal do meu espelho, o fascínio de viajar por sendas nunca pisadas em busca de horizontes desconhecidos e jamais imaginados. E assim foi. Tudo aconteceu depois disso, num abrir e piscar de olhos. Ela passou a trabalhar para mim. Nos meses subsequentes, entre um almoço e outro, uma viagem aqui, outra acolá, fomos passar a noite num motel. Do quarto desse motel como minha secretária, para a minha cama, como minha mulher.

Ainda hoje, depois de tantos anos, ainda vislumbro Brunela como a enxerguei na primeira vez. Apesar do tempo corrido, eu a sinto como naquele dia, formosa dentro do carro branco, sentada e tímida, meio que assustada, antes de abrir a porta. Consigo, ainda nesse instante, trazer à tona, como num desses filmes de curta metragem, o encanto, o mesmo bálsamo da animação poética que nasceu quando a vi pela primeira vez. Na verdade, Brunela continua com o toque certo que me agitou a base, a nota musical que harmonizou a minha alma, o recheio perfeito que guardei a sete chaves, para que ninguém ousasse imaginá-la como eu a mentalizei assim que lhe coloquei os meus sentidos em alerta. Ela segue inimitável.  Diria, sem medo de errar, perfeitinha. O vácuo da nossa disparidade de idade é enorme, porém, a minha Brunela, enlaça o irradiar da juventude no êxtase dos trinta, em contraste com os meus sessenta e seis, lembrando, outrossim, que a diferença entre nós, passa, e muito, dos degraus íngremes dos anos que não retroagem.


Entretanto, usque essa lacuna enorme, a sua áurea de brilho intenso transpira num boom de pratos orquestrais ao tempo em que cria em derredor de nossas vidas um instante bucólico e único, um prazer pastoril, repleto de expectativas prontas para explodirem ao menor toque da sua voz. Brunela é como o sol que se espalha, diria sem medo de errar, se faz vivificante como o alimento divino que estanca a minha fome. É essa moça de olhar sereno o porvir repleto de sensações nunca sentidas, de emoções nunca vividas. É poesia de arrebol, uma raríssima espécie de elo plural ligando o hoje ao super amanhã. É ainda, um clipe de apetite sentido, meu horizonte bordado por asas aladas à essencialidade do meu agora dentro de um ontem imperecedouro e perfeito, juntos, colados, grudados, como o côncavo e o convexo da canção interpretada pelo Roberto. Brunela não é só Brunela. É mais que um nome ao acaso. É o licor das harpas, o gosto de tudo temperando vontades.

É a minha amada, sem dúvida alguma, os sons de enfeites melodiando noites e dias, dias e noites, sonhos de voos distantes e inesquecíveis. É um Domaine de la Romanée quebrando o próprio mimo da garrafa ao ser aberto. É Fernando Pessoa declamando poesias corpóreas. É a Mariza cantando “Quem me dera” numa distância sempre pujante do meu resgate memorável, bem ainda, no pé do ouvido, no gostoso do nosso cantinho a vitalidade que me mantém a todo vapor. É Brunela a mulher, a criança grande, a estrela guia das minhas brincadeiras.  Brunela é ainda como os meus natais inesquecíveis. Os meus vinte e cinco de dezembro passados presentes e futuros... Todos eles recheados com flocos de neve, e mais que tudo: Brunela é o meu agora, o meu hoje, o meu amanhã. A minha estrada, a minha razão de querer continuar de mãos dadas, olhando na mesma direção a ser vivenciada. Sobretudo, Brunela é o eco do meu berro desesperado na garganta clamando indubitavelmente por seu amor.        
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Sertãozinho (Ribeirão Preto), interior de São Paulo. 24-12-2019

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Um comentário:

  1. Você, Apa, a cada dia me surpreende. Que lindo texto. Já o espalhei aos nossos contatos. Amei o "licor das harpas, o gosto de tudo temperando saudades".
    Carina
    Ca
    (de Sertãozinho, Ribeirão Preto, São Paulo)

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