Carina Bratt
De repente me vi presa no
amorfo estranho da falta de luz. Acorrentada aos escombros de um pretume
encarcerado, denso e pesado, me senti neófita. De olhos arregalados, abertos
até as orelhas, apesar disso não via nada. Nem um palmo enxergava adiante do nariz.
Veio então, me acudir à mente, instantes passados da minha vida. Momentos bons
e alegres, outros tristes e de profunda melancolia.
O que mais me deixou num vazio
pior que o tenebroso das trevas. Meu pai. Recordei dele num momento azedo,
virulento, avinagradamente amargo. E que momento foi esse? Meu velho herói no
leito de morte, para ser mais precisa, poucas horas antes de nos deixar de vez.
Papai Francisco (que o Eterno o tenha em sua santa misericórdia), sabia que não
voltaria para casa.
Desde que fora internado às
pressas, carregava na consciência a afixação de que não regressaria. E aos
poucos, com a sua paciência de Jó, foi nos preparando o espírito, como se
quisesse aliviar a nossa dor maior. A do seu recuo da vida, da sua deserção de
continuar lutando pela existência que se esvaia em passos tartarugados. Militar
linha dura, seu Francisco não dava o braço a torcer.
Suas palavras, como diziam os
antigos, não faziam curvas. O que ele falava podia se escrever. Era como
assinar com um fio de bigode. Com seu passamento, a rotina em casa mudou. Bem
sabíamos, não ouviríamos mais as suas risadas, os seus comentários sarcásticos,
as suas turras com mamãe, a implicância com as futilidades, a dinheirama que eu
gastava com produtos caros para meus cabelos.
Foi papai quem me liberou para
viajar com meu primeiro patrão, o Aparecido, quando eu ainda tinha dezessete
para dezoito anos. Por dona Marcela, minha mãe, eu jamais arredaria os pés de
suas saias. Mas papai viajava na maionese. Entendia meus sonhos e achava que “o
filho depois que cresce e cria asas, quer voar ao sabor do seu próprio vento”.
Recordo como se fosse hoje das palavras de meu velho ao Aparecido: “Seu moço,
minha filha está indo uma, não quero que volte duas”. Papai, esperto, arisco,
sinalizava uma possível gravidez.
E eu fui, alegre, feliz,
saltitante na inocência virginal, ansiosa do meu primeiro emprego, voluteando
nas alças da minha imaginação. Desde pequena, o incerto me obstinava, me
embirrava, me seduzia como um passo impensado em direção ao abismo. Apesar do
buraco à frente, que se abria enorme, vasto, eu não me importava em cair.
Queria dar causa aos meus próprios erros e me levantar dos infortúnios, me
fortalecer, me reestruturar sem a ajuda de quem quer que fosse.
O desconhecido me fascinava, o
forasteiro me extasiava, o oculto me enceguecia e eu via nesse passo ao acaso,
ao não sei para onde, algo que não pressentia no corriqueiro da vida sob o teto
da proteção familiar. Desde pequena queria ir além do portão da rua. Desde menina
(ainda em tempo do grupo escolar) necessitava descobrir as novidades das outras
artérias que se juntavam aquém da esquina que eu via todos os dias. Me sentia
entalada, minguada, aperturada.
Meus olhos se assemelhavam a
um depósito de coisas sobrenaturais, prontos para ver o mundo lá fora, de
perto, como também viver longe do teto de casa consanguínea. Tinha uma carência
enigmática, coberta de hera e loucura, loucura essa quase assombrada de pegar o
bonde da minha vida, de abraçar coisas novas. O calor materno me tolhia soltar
as amarras e viver plenamente a vida, como eu desejava.
O apetite aguçado de cortar o
cordão umbilical me obcecava me hipnotizava, me enfeitiçava. E de fato, me
desalgemei, me desaferrolhei e fui. Segui. Sai da comodidade do meu quarto me
desprendi das bonecas das amiguinhas, e, claro, dos meus pais, numa sexta-feira
por volta de vinte e duas horas, levando meia dúzia de calcinhas, duas calças
jeans e quatro blusas que mamãe comprara de última hora. Com a morte de meu pai
tantos anos depois... Nada mudou de forma. Ou mesmo de cor.
As minhas viagens se tornaram
mais constantes e espaçosas. Hoje, aqui, amanhã acolá, aeroportos cheios e com
problemas na hora de embarcar. Dependendo da rota a ser cumprida, chego a ficar
fora, por quase trinta dias seguidos. Com papai nos braços de Deus, dona
Marcela, minha querida mãe, coitada, acabou sozinha, de vez, estudando novas
formas de fazer blusinhas de crochê para recém-nascidos.
Desamparada (não desprezada,
isso jamais), todavia, sacrificada, postergada, desajudada, desfavorecida,
envolta com as malhas de uma solidão imensa e insana, que não só ela, mas eu,
igualmente, passei a deixar, como meu papito, em pequenas gotas de uma estranha
contribuição, como longos passeios noturnos sobre telhados adormecidos.
Título e Texto: Carina
Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo. 8-12-2019
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Mui bem Karina, sua reflexão me faz lembrar que no dia primeiro de abril de 1995 tambem me senti órfão do velho Gentil, que me motivava em visitá-lo sempre ao sabor de bom café, hoje? Nem pai, nem mãe, unam avos, nem tios e tias se fazem presentes e enquanto posso me agarro com unhas votos de que não saio daqui tão cedo so para saborear o sei lá toque dessa vida que Deus me da'
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