É importante que a parte da população que
exige ruidosamente mais medidas de restrição, para quem a nossa existência se
deve reduzir ao combate ao coronavírus, entenda que não há vida humana sem
risco
André Azevedo Alves e Rodrigo
Adão da Fonseca
O vírus pode dominar o nosso
corpo, mas não devemos permitir que domine as nossas mentes. Em artigo publicado aqui no Observador, na semana passada, alertámos para o elevado
risco que corremos se optarmos por enfrentar o coronavírus numa abordagem
bélica. Risco que se colocará se tivermos como objetivo único e absoluto a
capitulação do vírus, passando por cima do cálculo dos custos econômicos,
sociais e de saúde pública das medidas drásticas implementadas e a implementar,
e sem fazer a devida ponderação face às consequências, imediatas e mediatas,
que tais medidas necessariamente vão causar.
Quem tem de liderar durante
esta crise está perante um dilema no qual nenhuma das opções que venha a tomar
deixará de ter consequências negativas, na linha do que a Teoria dos Jogos
classifica de “no-win situation” ou “lose-lose situation”. Acresce que qualquer
análise de risco resulta da ponderação entre o impacto e a probabilidade,
comportando sempre o resultado projetado um grau de incerteza que, no caso do
coronavírus, aumenta significativamente. Face ao limitado conhecimento
científico existente à data, é impossível definir sem dúvidas substanciais
quais as medidas certas a tomar, em cada momento.
Não sendo um exercício
simples, há, porém, alguns aspetos nesta crise que não podemos deixar de
considerar. É importante que uma parte da população que exige ruidosamente mais
medidas de restrição, e que entende que a nossa existência, por caricatura, se
deve reduzir apenas ao combate ao coronavírus, compreenda que não existem
atividades sem risco, e que não há processos humanos onde o risco seja
mitigável até à sua completa anulação. Desde logo, porque o custo de tal
mitigação é na maior parte das vezes desproporcionado ou insuportável, mas
também porque faz parte da natureza humana, e da nossa existência, assumir
riscos. Nenhum de nós aceitaria uma proibição de circulação no período
natalício apesar de nessa época haver um aumento significativo da
sinistralidade automóvel. Como também nenhum de nós está disponível para ver os
seus hábitos e costumes quotidianos escrutinados e controlados exaustivamente
pelo Estado como forma de reduzir a mortalidade, por exemplo, ao nível das
doenças cancerígenas ou vasculares cerebrais.
A incerteza e a
excecionalidade que rodeiam o novo coronavírus exigem dos poderes públicos, na
linha do princípio da precaução, ações ao nível da mitigação que necessariamente
devemos aceitar, mesmo que a ameaça venha a revelar-se menos nociva do que
aquilo que inicialmente projetamos. É dever cívico de todos ser solidário com
decisões extraordinárias de reforço de meios, e até com fortes restrições
temporárias às nossas liberdades (mesmo que possam vir a revelar-se excessivas
no momento final da avaliação desta crise), facilitando a ação de quem tem de
liderar e decidir neste contexto extraordinário. Mas não é exequível conceber
medidas de mitigação que sejam incapazes de incorporar e aceitar riscos,
causando danos que são incompatíveis com a convivência saudável numa sociedade
onde existem múltiplos e legítimos interesses, e onde todos temos o direito de
construir as nossas vidas, as quais merecem ser respeitadas.
Há muitos milhares de
portugueses que já perderam ou perderão a curto prazo o seu emprego, uma parte
importante dos quais ficará numa situação de grande fragilidade econômica,
social e até psicológica. Há centenas de milhares de portugueses que estão a ver
o seu ano escolar irremediavelmente danificado, com prejuízos óbvios na
construção do seu futuro se, entretanto, este não for retomado. Há, por
exemplo, milhares de agricultores no Fundão que correm o risco de não poder
fazer a sua colheita, logo num ano onde não faltam cerejas. Há borregos que têm
de ser abatidos em Serpa, que fazem parte da nossa mesa pascal, sob risco de
deixar na pobreza os que se dedicam ao seu pastoreio. Existem inúmeros negócios
ligados à construção, restauração e turismo que tiveram de ser interrompidos, e
muitos não irão já reabrir. Muito pequenos negócios que após anos de
significativo esforço haviam atingido um equilíbrio frágil estão a fechar ou a
ver degradada a sua base de sustentação. Muitas empresas vão ter de utilizar o fundo
de maneio destinado a investimento para assegurar a sua sobrevivência. Há
dezenas de milhares de intervenções cirúrgicas, exames de diagnóstico e
tratamentos que estão a ser adiados, com inevitáveis consequências na saúde dos
portugueses e na futura mortalidade associada a outras patologias. Estes custos
não se sobrepõem necessariamente à aplicação de medidas de mitigação, mas
precisam de ser ponderados na calibragem dessas mesmas medidas a cada momento.
O Estado português, em linha
com a tendência maioritária a nível internacional, tem optado por restringir as
nossas liberdades para poder dessa forma reforçar o sistema de saúde e atrasar
o ritmo de propagação da pandemia. Começa porém a ser óbvio que o “lockdown”
está a causar prejuízos e danos de enorme magnitude que dificilmente poderão
ser compensados, seja porque as finanças públicas portuguesas não têm
capacidade para acorrer a todos, seja porque fenômenos de rent seeking
acabarão por desviar os recursos daqueles que mais deles precisam, seja porque
há danos (incluindo de saúde física e mental) que, pela sua natureza, não são
compensáveis. Importa aliás recordar que sem uma economia saudável não há
saúde, pelo que não temos o direito de fragilizar, hoje, as condições de
tratamento e acesso à saúde de todos os que, no futuro, vão precisar, nas
diversas patologias, de assistência na doença.
Torna-se assim prioritário
que, a par dos esforços de controle da pandemia e reforço da resposta do
sistema de saúde, os poderes políticos organizem e sinalizem o regresso gradual
à normalidade que, podendo não ser imediata, ser limitada, e com obrigações e
sacrifícios para todos por um período mais longo, precisa ainda assim de um
horizonte temporal claro.
No passado dia 13 de março, o The
New York Times lançou para o ar um podcast especial do programa “The
Daily”, que batizou de “A Bit of Relief” (em português, “Um Pouco
de Alívio”). No tempo que lhe foi atribuído, Dean Baquet, editor executivo
do jornal, leu uma passagem do ensaio de C.S. Lewis, chamado “On Living in
an Atomic Age” (em português, “Vivendo numa Era Atômica”), que na
sua beleza e simplicidade, nos convida a ponderar e a regressar, com brio, à
normalidade:
“Estamos em certa medida muito
preocupados com a bomba atômica. Como devemos viver numa era atómica? Estou
tentado a responder: ora, da mesma forma que vivemos no século XVI, quando as
pragas visitavam Londres quase todos os anos. Ou como viveríamos na era dos
Vikings, quando os bárbaros da Escandinávia poderiam visitar-nos numa qualquer
noite, e cortar as nossas gargantas. Ou, na realidade, da mesma forma que já
hoje vivemos numa era onde subsiste o cancro, a sífilis, paralisias, ataques
aéreos, acidentes viários e ferroviários. Dito de outra forma, não vale a pena
exagerar na novidade e excecionalidade da nossa situação. Acredite em mim,
prezado senhor ou senhora, você e todos os que ama já foram condenados à morte
antes da invenção da bomba ato mica, e uma percentagem bastante alta de nós já
iria morrer de maneiras desagradáveis. Na realidade, temos uma grande vantagem
sobre nossos antepassados – os anestésicos. Mas ainda os temos. É perfeitamente
ridículo choramingar e franzir o sobrolho porque os cientistas acrescentaram
mais uma chance de morte prematura e dolorosa a um mundo que já se arrastava
com essas possibilidades, e no qual a própria morte não era uma eventualidade,
mas uma certeza. Este é o primeiro ponto a ser feito.
E por isso a primeira ação que temos de tomar é recompor-nos. Se todos nós vamos ser destruídos por uma bomba ato mica, ao menos que ela nos encontre fazendo coisas sensíveis e humanas — rezando, trabalhando, ensinando, lendo, ouvindo música, dando banho às crianças, a jogar tênis, conversando com nossos amigos à volta de uma caneca e um jogo de dardos – e não amontoados como ovelhas assustadas a pensar em bombas. Elas podem despedaçar o nosso corpo (um micróbio pode fazer isso), mas não precisam dominar as nossas mentes”.
E por isso a primeira ação que temos de tomar é recompor-nos. Se todos nós vamos ser destruídos por uma bomba ato mica, ao menos que ela nos encontre fazendo coisas sensíveis e humanas — rezando, trabalhando, ensinando, lendo, ouvindo música, dando banho às crianças, a jogar tênis, conversando com nossos amigos à volta de uma caneca e um jogo de dardos – e não amontoados como ovelhas assustadas a pensar em bombas. Elas podem despedaçar o nosso corpo (um micróbio pode fazer isso), mas não precisam dominar as nossas mentes”.
Título e Texto: André
Azevedo Alves e Rodrigo Adão da Fonseca, Observador,
28-3-2020, 0h06
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