Péricles Capanema
Não vai falar do covid-19?
Tenha paciência, tratar de plenitude? Que atualidade tem isso? Calma, vou
escrever sobre o covid-19. E por que escolhi logo plenitude? Sei, o assunto não
dá manchete, parece do mundo da lua, desinteressante, frio. Incende para mim,
precisa queimar; quanto mais, melhor.
Em linhas muito gerais, vou
discorrer sobre uma plenitude, a humana. Com temperança, buscar a própria
plenitude, em qualquer âmbito (moral, cultural, financeiro), é direito humano.
Devagar. Plenitude tem (apenas) a atualidade do perene; no caso, perenidade de
enorme relevância. Semanas atrás, em escrito sobre objeto parecido,
observei: “Eles são perenes. Com efeito, em muitos sentidos o que é
verdadeiramente atual deixa ver sempre a nota do perene — eco do imorredouro no
presente. O resto é só o momentâneo, o passageiro, o fugaz, o efêmero, o
fugidio, sei lá o que mais. Realidades breves evanescentes, minguando rumo ao
nada.”
Estou convencido, é
imprescindível manter o assunto plenitude em lugar alto em nosso panorama
mental. Jamais retirá-lo daí — providência simples, irriga todo o espírito. Se
permanecer no horizonte de grande número de pessoas, vai estimular avanço
civilizatório, será vacina contra retrocessos e atrasos que, em última análise,
fortalecem a opção preferencial pela atrofia, parte integrante da política, já
de séculos, mesmo que inconfessada, das correntes revolucionárias. Exemplos
paroxísticos e próximos são Cuba e Venezuela. No século passado, foram macabros
e didáticos exemplos (melhorando, advertências), celebrados pelos progressistas
mundo afora, a Revolução Cultural Chinesa e o Camboja do Khmer Rouge — pelo
menos, até a revelação, ainda hoje parcial, da realidade dantesca. Muita gente
no Brasil, de alto a baixo da escala social, movida pela mitomania igualitária,
fez a opção preferencial pela atrofia, não vai mudar nunca. Os partidos de
esquerda e o “progressismo católico” estão abarrotados delas. E não só lá.
Otto Lara Resende comentava,
Nelson Rodrigues era uma “flor de obsessão”. Com isso queria significar, o
amigo repetia sempre alguns pontos. Batia, rebatia, martelava, reiterava,
insistia, reafirmava, recordava, repisava as mesmas trilhas. Atalhos perenes. O
dramaturgo recifense concedia ser e no, é isso mesmo. “Sou um obsessivo
e houve alguém que me chamou de ‘flor de obsessão’. Exato, exato, e graças a
Deus. O que dá ao homem um mínimo de unidade interior é a soma de suas
obsessões.” Morreu 40 anos atrás, até hoje seus textos são dos mais
lidos no Brasil. Ninguém se lembra, ou quase tanto, quais eram seus críticos.
Depois de frigir os ovos, tem coisa mais atual que a perenidade?
Entre companhia vasta, ou
seja, pessoas que viam utilidade na repetição, Nelson Rodrigues teve uma de
especial relevo, Napoleão. “A repetição é a mais forte figura da retórica”,
garantia. Para que serve a retórica? Persuadir. E o melhor instrumento para
convencer seria a repetição, opinião de alguém com forte propensão de convencer
pelo fuzil e chicote.
Acho também, pelo menos na
confusão da atual quadra histórica, é indispensável repetir alguns assuntos
(plenitude, um deles), mesmo com o recurso disfarçado pelo emprego de meios
variados. Martelar até que os argumentos entrem e se acomodem na cachola. Pode
parecer obsessivo; paciência, precisa. Um dia, quem sabe o tema da plenitude
humana exploda nas manchetes, é anelo meu, seja tratado como valor que acho
normal lhe seja atribuído; relevância dispensada por todos, claro, mas em
especial pelos que decidem os rumos da nação.
Verdade, aspiro que seja
preocupação central dos que decidem os rumos danação. Não estou aqui me
referindo, todavia, sobretudo a quem tenha destaque no Executivo, Legislativo,
Judiciário, empresariado, meios de divulgação, academia. Longe disso. Foco
realidade diferente.
Refiro-me em particular a
gente espalhada em todos os meios sociais que, entre outros atributos, tenha
amplitude de vistas, bom caráter, dotes de observação, pensamento próprio,
esteja interessada no bem comum, saiba valorizar doutrina e movimentos de alma
no público. Coloca-se, pela força dos fatos, à frente do povo, tem influência
decisiva nos seus destinos.
Talentos, se quisermos,
qualidades naturais, desde que não permaneçam latifúndio improdutivo, são o mais
importante ativo de um povo, mais que qualquer outro. Em contas finais decidem
seu bem-estar e presença na História. Florescê-los é o decisivo. Grandes
benfeitores, quem os estimula, das sementes aos frutos; criminosos, quem os
atrofia, impedindo que das sementes surjam árvores, plenitude daquelas.
Nas pessoas, nas famílias, nos
grupos sociais, latejam talentos já plenamente desabrochados, outros pelo meio
do caminho, outros ainda latentes, mananciais para aperfeiçoamentos futuros.
Levá-los à perfeição, mesmo
que relativa, cabe primeiramente às famílias, à escola, a instituições
próprias, aos mais variados ambientes sociais. De maneira suplementar, ao
Estado. Não é coisa de um dia. Acontece, qualidades em uma família levam duas,
três gerações para se desenvolverem plenamente. Volto a Napoleão, “a
educação de uma criança começa vinte anos antes de ela nascer, com o nascimento
de sua mãe”. Infelizmente, em cada geração a imensa maioria das
qualidades naturais não chega ao pleno florescimento, à plenitude, enfim. Mais
ainda, não é raro, em cada geração, antigos reservatórios de conhecimentos,
costumes, modos de fazer e de ver a vida de enorme valor acabam indo para o
ralo, somem. E é preciso começar do chão outra vez.
Hoje, em frangalhos, a família
perdeu muito de sua capacidade formativa. Mas, de si, é a estufa natural para o
florescimento das sementes. A seguir, de forma suplementar, outros grupos
sociais. Todos somos, uns para os outros, em ocasiões próprias, mestres,
modelos, regentes.
Ponto escamoteado, mas
central, convém ser realçado, pois é foco difusor de excelência, um dos
reflexos da plenitude. Nas mais variadas elites de um povo, elites de artesãos,
de escritores, de empresários, de políticos, de diplomatas, de professores, de
cozinheiros e cozinheiras, sociais, de financistas, de seleiros, o tempo vai
depositando valioso acervo de perfeições humanas, necessárias ao bem comum, que
é crime desconhecer, subestimar, a elas ser indiferente; mais ainda, atacar.
Pelo contrário, o dever é estimulá-las com proporção, pois favorecem o
aperfeiçoamento social.
Preciso fechar. Reflitamos
sobre plenitude; pessoal, familiar, social. O mundo pós-pandemia será muito
melhor, se dermos ao tema o lugar merecido.
Título, Imagem e Texto: Péricles
Capanema, ABIM, 22-4-2020
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