terça-feira, 16 de novembro de 2010

Brasil de "dentro", Brasil "de fora"


O Brasil tem eleitores mas faltam-lhe cidadãos. Habituada à castração política durante o regime militar, a população ainda é despolitizada e alheia às realidades do poder

Rio de Janeiro, foto: Sylvain Justum
Uma semana depois de ter ganho o Nobel da Literatura de 2010, o peruano Mário Vargas Llosa visitou o Brasil. Enquanto um dos principais jornais brasileiros destacou, em manchete, que "Para Vargas Llosa, Lula tem conduta 'esquizofrénica' no Governo", um dos maiores diários portugueses noticiou: "Vargas Llosa elogia política interna de Lula." Alguém mentiu? Na verdade, não. Vargas Llosa tanto criticou quanto elogiou o Governo de Lula, mas os jornalistas destacaram o que acharam mais acertado. E o que é mais acertado para a imprensa brasileira, não é necessariamente o mais acertado para a imprensa internacional. Observar o Brasil "de dentro" não é o mesmo que observá-lo "de fora". Lula sabe isso melhor do que ninguém. E por isso liderou o Brasil com um pé fora do país, imprimindo na comunidade internacional a imagem de um país de sucesso. Contudo, a campanha eleitoral, ainda que precária no que respeita ao conteúdo, serviu para que nos apercebêssemos de que, tal como diz a música da Elis Regina, o "Brazil" não conhece o "Brasil". Existe um país que Lula não exporta mas que os brasileiros consomem todos os dias. Ter carne no prato e luz em casa é um desafio para uma fatia significativa da população. Esta microrrealidade é a única que interessa aos eleitores, na campanha. O Brasil que gera euforia e se agiganta no estrangeiro ainda não existe, para a maioria da população. São duas visões autênticas do mesmo país ainda por reconciliar.



Brasil, um
Se Fernando Henrique Cardoso fertilizou a terra, controlando a hiperinflação de estilo zimbabueano e criando uma nova moeda, Lula plantou a estabilidade e o crescimento económico. O país cresceu 3,5%, em média, ao ano, de 2002 a 2009, e já é a oitava maior economia do mundo. Menos conhecida mas igualmente relevante é a expansão do crédito, que representa, hoje, 48% do PIB, percentagem bastante expressiva em relação à economia brasileira (em 2014, estima-se que atinja os 70 por cento). Pela primeira vez, foi dado o direito aos brasileiros de pensar no futuro. Para os estrangeiros, é quase cómico mas, no Brasil, é possível pagar qualquer coisa em prestações, desde um remédio na farmácia a um par de sapatos. A pergunta "quer parcelar em quantas vezes?" já faz parte da rotina do supermercado. A cereja em cima deste sucesso económico foi a liquidação da dívida ao FMI, no final do primeiro mandato de Lula. De devedor o Brasil tornou-se credor.
Estes alicerces económicos permitiram avanços sociais. Na última década, foram arrancados da miséria cerca 20 milhões de brasileiros, em muitos casos à custa de programas assistencialistas. O famoso Bolsa Família chega a 12,7 milhões de famílias. A venda de eletrodomésticos cresceu 28%, no último ano. É um novo Brasil sedento de bens de consumo.
Além disso, ao contrário de outras potências emergentes (como a Índia, China ou África do Sul), o país tem também impressionantes índices de harmonia étnica. O Brasil é o segundo país do mundo com mais negros (a seguir à Nigéria), e acolhe as maiores diásporas japonesa, sírio-libanesa, italiana e portuguesa, a nível mundial. Ao contrário da Suécia ou Portugal - países aplaudidos pela sua capacidade de integração - praticamente não existem, no Brasil, mecanismos institucionais de acolhimento e integração de emigrantes. A absorção é feita organicamente pelo povo. Qualquer estrangeiro deixa de o ser em poucos anos.

Existe um país que Lula não exporta mas que os brasileiros consomem todos os dias. Ter carne no prato e luz em casa é um desafio

Palafitas no Bairro da Torre, Recife
Imagem cedida por Leo Rodrigues e Thiago Wagner.


Brasil, dois
Mas se o país fosse só aquilo que a imprensa internacional diz que é, como se explicaria a 75.ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano, que mede a qualidade de vida das pessoas, bem atrás de países latino-americanos, como a Argentina, Venezuela e México? Em várias áreas basilares, o país ainda é deficitário. Recentemente, um estudo internacional indicou que a qualidade da infraestrutura brasileira é das piores entre todos os países do mundo de grande e médio porte (dados do Fórum Económico Mundial). A malha ferroviária é pequena, os aeroportos e os portos estão congestionados e o potencial hidroviário permanece inexplorado. Apenas metade das residências tem acesso à rede de esgotos.
A aposta no betão só faz sentido se se investir também em educação. E, aqui, o Brasil ainda está muito longe dos padrões internacionais - 49% dos eleitores que votarão no dia 31 de outubro têm apenas o ensino primário e somente 3% possuem ensino superior. Muitas multinacionais queixam-se da falta de mão-de-obra qualificada para preencher vagas de topo nas empresas. São os persistentes baixos níveis de educação que levam alguns economistas (não partidários) a contestar a ideia amplamente divulgada internacionalmente de que o Brasil tem uma nova classe média de 30 milhões de pessoas. Segundo explicam, "classe média" não é só uma estatística de rendimento mensal. Tem também de envolver melhores níveis de educação e conhecimento, e interesse pela atividade política.
Mas se havia dúvidas quanto à falta de cultura democrática, elas desmoronaram-se na campanha eleitoral. O Brasil tem eleitores mas faltam-lhe cidadãos. Habituada à castração política durante o regime militar, a população ainda é despolitizada e alheia às realidades do poder. Um milhão e trezentas mil pessoas ainda acharam graça eleger um palhaço analfabeto para o Congresso Nacional. Imprudências foram muitas. Dos 320 congressistas que se re-elegeram na primeira volta das eleições, no dia 3 de outubro, um quarto responde a processos no Supremo Tribunal Federal. A política está longe de atrair só os ímpios. A maioria desconhece que, na Roma Antiga, os políticos se chamavam "candidatos" porque vestiam togas cândidas, sinal de pureza.

Foto: Angela Makie Nakazawa

Brasil, um e meio
A principal missão do próximo Presidente brasileiro terá de ser uniformizar estes dois brasis - o de dentro e o de fora. Este será um processo lento e ardiloso, mas o Brasil tem todas as condições para o superar. Mas como amigos facilmente se tornam inimigos, o maior empecilho poderá ser a imprensa internacional. A unipolaridade dos EUA cansa a todos. E a pressão da imprensa por novos atores no jogo global poderá iludir os brasileiros de que eles já estão preparados para liderar. Está quase, mas ainda não chegou a hora.
Rodrigo Tavares, revista Visão, 28-10-2010

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