António Pinho Cardão
O alquimista de Veneza acabou
enforcado em Munique; o alquimista político renasce a todo o tempo e a fórmula
persiste e renova-se
Com a descoberta do caminho
marítimo para a Índia e o desvio da rota das especiarias do Mediterrâneo para o
Atlântico, Veneza entrou em declínio: a economia ressentiu-se, bancos entraram
em colapso, sucederam-se falências, a crise chegou.
Por essa altura, chegavam a
Veneza os ecos dos feitos de um alquimista, Il Bragadino, que de cidade em
cidade ia mostrando o singular dote de transformar matéria desconhecida em ouro
de lei. O seu prestígio crescia à medida que as cortes e os fidalgos lhe
entregavam grossas somas para a aquisição da misteriosa matéria-prima que
transformaria em ouro. Também manejava com sucesso a pedra filosofal, e a cura
da infertilidade de Bianca Capello, Grã-Duquesa de Florença, aumentou-lhe fama
e proventos.
Tardando o Doge em resolver a
crise, um grupo de venezianos pensou que a aposta nos poderes de Il Bragadino
poderia ser a solução. E uma petição levou o Senado, em votação democrática, a
contratá-lo para exercer a sua arte a benefício da cidade, a troco de palácio,
honrarias e avultados bens materiais.
Empossado, exigiu Il Brigadino
substancial soma de ducados para a aquisição da matéria-prima que iria servir a
alquimia. Ao mesmo tempo, ia promovendo demonstrações solenes do seu poder,
retirando areia de um vaso e deixando-a cair, entre os dedos, misturada com
grãos de ouro. Com a demostração, ia pedindo tempo para transformar em ouro
toda a matéria-prima aprovisionada. Mas, com o passar dos anos, e não vendo os
resultados esperados, desacreditaram os venezianos dos poderes do alquimista,
oportunidade que ele logo encontrou para se despedir com justa causa. A
alquimia só funcionava em ambiente de grande união e o que ele sentia era
profunda desconfiança; o povo tornara-se o culpado do fracasso do processo.
Veneza perdeu tempo e dinheiro, mas o mago foi logo disputado por várias outras
cidades, da Itália à Baviera.
Aparecem alquimistas em todas
as democracias, mormente em tempos de dificuldades. Com uma simples aposta
tocada pela pedra filosofal, o alquimista afirma poderes de transformação
imediata das crises em crescimento, gerando riqueza abundante para todos. E na
propaganda do método e nos laços que vai criando, estabelece a teia que vai
permitir a sua entronização por um qualquer Senado. A quem promete e jura que a
aplicação das fórmulas químicas constitucionais da aposta vai gerar
prosperidade certa e distribuição equitativa.
Mas logo no poder, as fórmulas
químicas, antes sagradas, passam a ser modeladas à medida da sua conveniência e
a alquimia, antes imediata, passa a demorar anos a produzir efeito.
Como o alquimista de Veneza,
também faz demonstrações. Dos pequenos rolos escondidos nos punhos já não saem
alguns grãos de ouro que caíam com a areia, mas moedas à razão de 30 cêntimos
por mês, transformando a crise dos reformados em riqueza, ou de 70 cêntimos,
assegurando o abono pleno de família necessitada.
Num estádio superior de
manipulação alquímica, mistifica o fim de impostos que vão continuar a ser
pagos e proclama o fim de outros que nunca existiram. E se o ouro não chega na
quantidade exigida a alguns dos senatoriais apoiantes, logo lhes entrega pepita
mais real, a da exploração das gôndolas nos canais da cidade e no espaço aéreo
circundante.
Distribuído o pouco ouro que
existia, e já não podendo continuar a ilusão, o alquimista imputa a terceiros a
responsabilidade do insucesso.
O alquimista de Veneza acabou
enforcado em Munique; o alquimista político renasce a todo o tempo e a fórmula
persiste e renova-se.
O alquimista é bem a criação
de uma democracia sem qualidade.
Título e Texto: António Pinho Cardão, Economista e
Gestor, Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade, jornal “i”, 3-1-2015
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