Maria João Marques
O BE, que em tempos também rasgou as
vestes pelos efeitos dos fogos de verão, agora só despeja afetos sobre a
população da Madeira. Está visto: os incêndios socialistas queimam menos do que
os outros.
Deixem-me contar uma história
de aceitar convites. Não é minha, é de Candace Bushnell (a autora do livro que
germinou a ideia da série de televisão icónica O Sexo e a Cidade),
em 4 Blondes. Uma modelo nova-iorquina gostava de passar os verões nos Hamptons
acima das suas possibilidades. Então, a cada primavera, escolhia um namorado
endinheirado (sem intenções de durabilidade) que viesse com anexo de uma casa
aceitável nos Hamptons. Vindo o verão, restava-lhe aceitar o convite do
namorado para passar as férias na sua casa de veraneio. Finda a temporada
estival, o namoro terminava.
Esta história tem-se passeado
na minha memória desde que começou o caso da viagem do secretário de estado
Rocha Andrade paga pela Galp. Sobretudo depois de Ascenso Simões ter tuitado que nada de mal havia neste
assunto, afinal o secretário de estado limitara-se a aceitar um convite. Já não
é a primeira vez que à esquerda se justificam comportamentos estranhos como
meras aceitações de convites. Mas, convenhamos, mesmo estando todos nós
convencidos da ausência de expetativa de sexo neste caso (ao contrário de
em 4 Blondes), ninguém acredita na existência de políticos ingénuos
que suponham que todos os convites são aceitáveis.
E – no convite concreto aceite
por Rocha Andrade – é mesmo mentira descarada afirmar-se (como fez o
prevaricador) que se tratou de uma cortesia ao abrigo da adequação social. As
cortesias não têm valores que vão das largas centenas aos milhares de euros.
Também não é nada socialmente adequado qualquer político receber presentes tão
avultados. Nem precisamos de chegar à corrupção declarada para objetarmos a
estes convites. As empresas não gastam dinheiro se não para ganhar dinheiro, e
o que pretendem com estes convites é criar uma rede que lhes permita acesso
mais direto aos responsáveis da tutela. E, quando for o caso, já lançaram as
sementes para que políticos ou reguladores decidam favoravelmente (e,
provavelmente, dentro da legalidade) à empresa que foi em tempos tão generosa.
Mas como (quase) sempre, tão
ilustrativas foram as reações ao caso como a descontração com que políticos
aproveitam qualquer benesse que caia em cima do cargo. Houve a patética
tentativa concertada nas redes sociais de equiparar as tontas justificações de
falta dos deputados do PSD que também fizeram a viagem (aparentemente paga
pelos próprios) ao ato de Rocha Andrade. Como se quem tutelasse, mesmo de
resvés, a apropriação de dinheiro dos contribuintes (que são os impostos)
pudesse ter sobre si sequer a suspeita de que costuma surripiar um ou outro
bago de uva para comer quando no supermercado – havendo ou não litígio com a
empresa generosa que faz ‘cortesias’ de dois mil euros.
Os colegas do PS na
geringonça, almas sensíveis e moralistas que passaram os últimos anos a pedir
demissão de qualquer pessoa, nos ministérios e nas empresas públicas, possuidora
de batimento cardíaco, desta vez torceram o nariz mas recatadamente aceitaram
que os secretários de estado que recebem ‘cortesias’ hipergenerosas da Galp
permanecem no governo. Não que alguém duvidasse, mas a suposta moral de buraco
da agulha de BE e do PCP soçobrou mal foi necessário para a continuação do seu
poder e influência junto do governo que apoiam.
Piadistas pretenderam que a
viagem oferecida a Assunção Cristas, durante o Euro 2016, pela Federação
Portuguesa de Futebol (que é uma instituição de utilidade pública) teve a mesma
gravidade e simbolismo que a oferta de uma grande empresa aceite pelos
secretários de estado. Outros questionaram a Galp, como se não fosse normal uma
empresa, abertamente em defesa dos seus interesses particulares, procurar boas
relações e boa vontade com o poder político. E, quantas vezes, é punida pelo
mesmo poder político se não assegura quanto pode estas ‘cortesias’
dispendiosas.
O objetivo foi claro: dar
ideia de que todos fazem o mesmo, de que são todos iguais, para distrair os
eleitores da especial gravidade dos atos dos três secretários de estado, mais ainda do que os presidentes de autarquias, com Rocha Andrade no cimo do
pódio.
No meio disto percebemos, pelo
caso da notícia falsa do JN sobre um juiz que decidiu duas providências
cautelares contra o ministério da educação, que o governo se dedica ao negócio
de investigar onde estudam os familiares dos juízes (e sabe-se lá o que mais) e
de transmitir informações falsas para a comunicação social recetiva. Temos um
presidente que fala de tudo, mas deste atentado à independência dos tribunais
nada ouvi.
Por fim, outra vez a conta de
twitter de António Costa – que será brevemente, estou certa, objeto de papers e
dissertações de psicologia política sobre o efeito de banalidades e clichés nos
eleitores. Com o país a arder há vários dias, Costa entendeu ignorar as
labaredas e os que corajosamente as tentam conter. Mas Telma Monteiro ganhou a
medalha e Costa correu (e bem) a felicitá-la. Os fogos (que deixam descansado o
ministro do ambiente – que alívio!), as populações afetadas, os bombeiros e
todos os envolvidos na proteção civil só ontem, depois de protestos indignados,
foram reconhecidos pelo pm, quer com tuites quer com a visita inócua a umas
instalações da proteção civil. Ninguém pode acusar Costa de ter as prioridades
bem arrumadas.
O BE, que em tempos também
rasgou as vestes pelos efeitos dos fogos de verão, agora só despeja afetos
sobre a população da Madeira. Está visto: os incêndios socialistas – e nem
todos envolvem chamas e madeira ardida – queimam menos do que os outros. É
porventura a consequência mais divertida da geringonça: ver o moralista BE num
pântano moral.
Título e Texto: Maria João Marques, Observador,
10-8-2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não aceitamos/não publicamos comentários anônimos.
Se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-