Mario Sabino
Outro dia me perguntaram qual
havia sido o grande erro que eu havia cometido na vida.Embatuquei. Foram
tantos. Pedi para que o sujeito delimitasse o campo: familiar, amoroso,
intelectual ou profissional? Ele respondeu "profissional".
Não tive dúvida: o meu maior
erro foi tentar sair do jornalismo, desobedecendo à máxima de Sêneca, o
pensador romano, segundo a qual, para sermos felizes, devemos "estabelecer
antecipadamente o que buscamos atingir e, depois, examinar por onde podemos
chegar lá mais rapidamente, desde que seja pelo caminho certo". Eu havia
me desviado do caminho que havia traçado para mim e me dera mal.
O meu interlocutor não se
satisfez com Sêneca e pediu para que eu fosse pontual: qual havia sido o grande
erro que eu havia cometido no jornalismo.
Pensei em quase todas as
bobagens que escrevi (difícil lembrar de todas, quando se tem 32 anos de
profissão), mas nenhuma me pareceu forte o suficiente para saciar a súbita
vontade de penitenciar-me. Passados longos cinco minutos, afirmei que o meu grande
erro profissional havia sido ter feito a coisa certa no momento errado.
Em 1998, quando assumi o cargo
de editor-executivo de Artes e Espetáculos da revista Veja, fui incumbido pelo
então diretor de redação de dar uma espanada na poeira que se depositara na
editoria. Uma das minhas providências foi criar a seção "Veja
Recomenda", para cobrir mais extensamente o mercado cultural. Além disso,
decidi tornar a lista de livros mais vendidos rigorosa e semanal. Havia anos, a
lista era elaborada de qualquer jeito por um funcionário da produção da
revista, a partir dos relatórios enviados pelas livrarias, e era publicada
apenas quando sobrava espaço nas páginas da editoria, sem periodicidade
definida.
Determinei que a lista
entraria toda semana, na seção recém-nascida, e que seria feita pelo jornalista
encarregado de cobrir a área de livros, com a ajuda de um programa de
computador que cruzaria as informações prestadas pelas livrarias, para evitar
que eventuais discrepâncias entre os dados fornecidos falsificassem o
resultado.
Em 2004, já na condição de
redator-chefe, lancei o meu primeiro romance, O Dia em que Matei Meu Pai. Nos
relatórios enviados pelas livrarias e cruzados pelo programa de computador, o
romance ficou nas duas semanas seguintes logo abaixo do décimo lugar, portanto
fora da lista. Até que, na terceira semana após o lançamento, a editora Record,
que publica os meus livros, entrou em contato comigo para dizer que a revista
andava classificando títulos de não ficção como ficção. Os títulos eram Perdas
& Ganhos e Pensar É Transgredir, ambos de Lya Luft, e As Filhas da
Princesa, de Jean P. Sasson, que havia passado a ficção de uma semana para
outra. A Record disse, ainda, que As Mentiras que os Homens Contam, de Luis
Fernando Verissimo, não podia ser considerado "ficção", visto que um
quarto do livro era composto por textos não ficcionais (fora a eterna discussão
sobre se crônicas jornalísticas, mesmo quando recorrem à fantasia, podem ser
consideradas ficção).
A editora Record estava certa:
a lista de mais vendidos da Veja, que ganhara rigor e peso seis anos antes,
errara. Subvertia categorias e posições. No caso de As Mentiras que os Homens
Contam, por ter sido incluído em ficção, o livro havia deixado de entrar na
lista na semana anterior, como vim a constatar. Ou seja, Luis Fernando
Verissimo tinha sido prejudicado ao máximo. Os equívocos haviam sido gerados
pelas próprias livrarias, que trocaram as categorias desses títulos, e
continuados pelas falhas nos controles da revista.
A questão me colocava numa
situação de conflito de interesses bastante peculiar – se eu corrigisse a
lista, o meu romance entraria entre os dez mais vendidos, o que obviamente me
beneficiava; se não corrigisse, eu não entraria, mas estaria falsificando mais
uma vez a informação, lesando igualmente outros autores.
Ouvi os jornalistas envolvidos
na elaboração da lista e o diretor de redação. Todos afirmaram que deveríamos
corrigir a lista. A responsabilidade, no entanto, foi integralmente minha.
Resolvi ir adiante nas correções, com a publicação de um box, ao lado da lista,
para explicá-las. O meu romance acabou entrando, por uma única semana, no
último lugar entre os mais vendidos. É óbvio que fiquei contente, mas com certo
desconforto. Não teria sido melhor corrigir a lista só depois que o meu livro
tivesse sumido do pedaço?
Em 2008, quatro anos mais
tarde, quando virei alvo dos blogueiros sujos por causa do mensalão, esse
episódio voltou-se contra mim. Fui acusado de falsificar a lista para que o meu
romance figurasse nela. Abriram-se as portas do inferno: expuseram a minha vida
particular, porque eu namorava a diretora editorial da Record, e inventaram que
eu mandava subordinados escreverem resenhas positivas sobre os meus livros na
Veja e até as editava. Reinaldo Azevedo gentilmente abriu espaço para que eu me
defendesse na internet, mas a minha defesa só fez aumentar a sanha dos
bucaneiros do PT. Eu errei ao fazer a coisa certa no momento errado, porque
também abri um flanco para os inimigos.
Depois de contar essa história
ao meu interlocutor, perguntei-lhe se ele havia feito algo semelhante. Estou
esperando a resposta.
E você, prezado leitor, já
errou ao fazer a coisa certa no momento errado?
Título e Texto: Mario Sabino, Newsletter O Antagonista,
5-8-2016
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