Alberto Gonçalves
Durante anos a fio, criaturas
mal-intencionadas difundiram um estereótipo dos taxistas: rudes, malcriados,
intolerantes, não demasiado honestos, não excessivamente asseados e não muito
agradáveis em geral. Entre outras coisas, os membros da classe que participaram
na manifestação de segunda-feira provaram a todo o país que o estereótipo não
corresponde à realidade.
De facto, a julgar pela vasta
amostra, os taxistas são gente decentíssima, chefes de família que só desejam
acautelar o primado da lei e a protecção do consumidor. No fundo, são heróis,
quase mártires, dispostos a sacrificar um dia de trabalho a troco do bem comum.
Imagine-se o inverso: quantos de nós abdicaríamos de parte apreciável do nosso
salário apenas para beneficiar os taxistas? Só os que utilizarem os serviços de
um deles, sobretudo dos que, sempre em prol do consumidor, fazem escala em
Alverca numa "corrida" da Portela ao Marquês.
Joguetes de interesses
obscuros, as televisões praticamente não dedicaram "antena" à
manifestação. Se não fossem cinco ou seis canais em "directo" desde
manhãzinha até à madrugada seguinte, o acontecimento teria passado
despercebido, assim como a adequada indignação dos profissionais da bandeirada,
que decerto justificava mais do que meras dezenas de horas de emissão. Para
cúmulo, à escassa importância dada à manifestação os media acrescentaram
interpretações absurdas das acções dos manifestantes, destinadas a fornecer uma
péssima imagem dos mesmos. Tentarei repor a verdade e contar o que vi.
Em suma, vi uma bela lição de
civismo. Vi os taxistas cercarem o aeroporto, não para transtornar o público,
mas de modo a impedir a fuga de novos argelinos e contribuir voluntariamente
para o combate ao terrorismo. Vi os taxistas tratarem à pedrada um carro da
malévola concorrência, não para a intimidar, mas para aplicação graciosa de um
restyling modernaço ao veículo. Vi os taxistas lançarem garrafas de água à
política, não com intenções agressivas, mas a fim de refrescar os agentes da
autoridade no pino do calor. Vi taxistas ajudar repórteres a passar o tempo
através de saudáveis insultos e tabefes fraternos. Vi taxistas exaltarem a
variedade étnica da nação ("O primeiro-ministro é monhé"). Vi
taxistas oferecerem estimulantes pareceres jurídicos ("As leis são como as
meninas virgens: são para ser violadas"). Vi taxistas homenagearem
orientações sexuais alternativas ("Aqui é só paneleiragem"). Vi
taxistas queixarem-se de discriminação. Vi que, dos dois destacados mentores
espirituais dos taxistas, um se chama Florêncio e o segundo invoca
constantemente uma "plantaforma", referências botânicas que atestam o
carácter dócil e íntegro dessas duas alminhas. Vi, afinal, uma corporação de
valentes profissionais reagir à opressão mediante berros ordeiros e pancadaria
didática.
E principalmente vi Sua
Excelência, o Senhor Presidente da República, considerar que "a
manifestação foi pacífica" e que "o balanço global é positivo".
Depois disto, fica claro que nenhum cidadão consciente voltará a entrar num
automóvel da Uber. Ou deixará de reeleger o prof. Marcelo. Para a semana, os
funcionários da Fosforeira vão apagar um incêndio qualquer em protesto contra a
Bic.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 16-10-2016
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