domingo, 16 de outubro de 2016

Rapazes de táxis

Alberto Gonçalves
Durante anos a fio, criaturas mal-intencionadas difundiram um estereótipo dos taxistas: rudes, malcriados, intolerantes, não demasiado honestos, não excessivamente asseados e não muito agradáveis em geral. Entre outras coisas, os membros da classe que participaram na manifestação de segunda-feira provaram a todo o país que o estereótipo não corresponde à realidade.

De facto, a julgar pela vasta amostra, os taxistas são gente decentíssima, chefes de família que só desejam acautelar o primado da lei e a protecção do consumidor. No fundo, são heróis, quase mártires, dispostos a sacrificar um dia de trabalho a troco do bem comum. Imagine-se o inverso: quantos de nós abdicaríamos de parte apreciável do nosso salário apenas para beneficiar os taxistas? Só os que utilizarem os serviços de um deles, sobretudo dos que, sempre em prol do consumidor, fazem escala em Alverca numa "corrida" da Portela ao Marquês.

Joguetes de interesses obscuros, as televisões praticamente não dedicaram "antena" à manifestação. Se não fossem cinco ou seis canais em "directo" desde manhãzinha até à madrugada seguinte, o acontecimento teria passado despercebido, assim como a adequada indignação dos profissionais da bandeirada, que decerto justificava mais do que meras dezenas de horas de emissão. Para cúmulo, à escassa importância dada à manifestação os media acrescentaram interpretações absurdas das acções dos manifestantes, destinadas a fornecer uma péssima imagem dos mesmos. Tentarei repor a verdade e contar o que vi.

Em suma, vi uma bela lição de civismo. Vi os taxistas cercarem o aeroporto, não para transtornar o público, mas de modo a impedir a fuga de novos argelinos e contribuir voluntariamente para o combate ao terrorismo. Vi os taxistas tratarem à pedrada um carro da malévola concorrência, não para a intimidar, mas para aplicação graciosa de um restyling modernaço ao veículo. Vi os taxistas lançarem garrafas de água à política, não com intenções agressivas, mas a fim de refrescar os agentes da autoridade no pino do calor. Vi taxistas ajudar repórteres a passar o tempo através de saudáveis insultos e tabefes fraternos. Vi taxistas exaltarem a variedade étnica da nação ("O primeiro-ministro é monhé"). Vi taxistas oferecerem estimulantes pareceres jurídicos ("As leis são como as meninas virgens: são para ser violadas"). Vi taxistas homenagearem orientações sexuais alternativas ("Aqui é só paneleiragem"). Vi taxistas queixarem-se de discriminação. Vi que, dos dois destacados mentores espirituais dos taxistas, um se chama Florêncio e o segundo invoca constantemente uma "plantaforma", referências botânicas que atestam o carácter dócil e íntegro dessas duas alminhas. Vi, afinal, uma corporação de valentes profissionais reagir à opressão mediante berros ordeiros e pancadaria didática.

E principalmente vi Sua Excelência, o Senhor Presidente da República, considerar que "a manifestação foi pacífica" e que "o balanço global é positivo". Depois disto, fica claro que nenhum cidadão consciente voltará a entrar num automóvel da Uber. Ou deixará de reeleger o prof. Marcelo. Para a semana, os funcionários da Fosforeira vão apagar um incêndio qualquer em protesto contra a Bic.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 16-10-2016 

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