Alberto Gonçalves
Cara Maria (se quiser,
acrescento o "dra.": a julgar pelos exemplos que chegam das franjas
do governo, o título dispensa licenciaturas), soube que escreveu ao Presidente
da República. Infelizmente, apanhou-o em Havana, em cordial visita à nomenclatura
de psicopatas locais. Felizmente, o conteúdo da carta
caiu nas páginas da Visão e facilitou a exposição do drama da Maria ao país
inteiro.
Resumindo muito, a Maria conta
que "sonhou" (cito) ser médica desde pequenina e que, por causa de
umas décimas na nota de candidatura, não conseguiu entrar em nenhuma
universidade portuguesa. Por isso, tenta hoje aceder a uma universidade
espanhola. Nada de especial. O problema é que, logo de seguida, a Maria salta
dos factos para as lamentações.
Pelos vistos, há um
"sistema injusto" que a impede de cumprir a ambição académica. Não
duvido. Sucede que a responsabilidade pelo dito cabe justamente à corporação
dos médicos que a Maria admira: a pretexto da qualidade, a zelosa vigilância do
numerus clausus nos cursos em causa trata de regular a quantidade de
profissionais e assim preservar o "prestígio" perdido por outras
profissões com excesso de oferta e consequente desemprego. Não ficou claro se a
ideia da Maria é acabar com selecção tão restrita. Se for, peço-lhe que depois
não escreva cartas a queixar-se de que, aliás à semelhança de quase toda a
gente, corre o risco de não arranjar trabalho.
Se, pelo contrário, a Maria
concorda com o numerus clausus e apenas discorda da avaliação que a rejeitou,
aí o caso complica-se. À custa dos salamaleques exibidos pelos papás
contemporâneos, percebo que os jovens da geração - e, suponho, do meio social
da Maria - cresçam sob a ilusão de que o mundo é um lugar fácil e está ganho à
partida. Não é e não está. A verdade é que a Maria se sujeitou a provas e,
segundo critérios "exclusivamente científicos" (o desplante!), perdeu
para uma data de colegas. "Quem é que avalia o lado humano?",
pergunta a Maria. Ninguém, por ser um conceito vago e, em última instância,
insusceptível de medição. Se não fosse, também ninguém garante que o "lado
humano" da Maria lhe concederia a vaga que procura. Os argumentos que a
Maria apresenta para justificar a admissão ("Porque eu quero, porque eu
mereço, porque eu preciso") não são especialmente portentosos. Nem
compatíveis com a visão, algo ornamentada, que a Maria tem do ofício ("Ser
médico é ser-se astuto, perspicaz, responsável, sensato e sensível").
Mas o maior equívoco da Maria
prende-se com o patriotismo. Embora continue com hipóteses de estudar medicina
em Espanha, a Maria chora ("Por muito difícil que seja, se o meu país não
me concede a oportunidade de me formar onde nasci e onde pertenço, vou ter de
pertencer a outro lado") a sua eventual saída do nosso "país, lindo,
limpo, seguro, organizado". Aparentemente, a Maria imagina-se na Suíça e
não tenciono desenganá-la. Limito-me a dizer-lhe que a piedosa curiosidade dos
media sobre os compatriotas que abalavam para o estrangeiro em fuga da
"austeridade" terminou no momento em que a malvada
"direita" cedeu o poder à benévola extrema-esquerda. Além disso,
mesmo que na altura os media não o referissem, ir para fora não é uma condenação:
com frequência, é uma oportunidade e, dado o actual rumo da pátria, uma bênção,
que se calhar lá mais para a frente a Maria agradecerá com fervor.
Entretanto, Maria, dou-lhe um
conselho: tenhamos ou não carência de médicos, estamos atafulhados de péssimos
retóricos, pelo que não abuse do lirismo, ou do "lado humano" em
detrimento do científico. Esqueça o "estetoscópio de plástico amarelo e
verde de brincar" e a "mochila cheia de sonhos e vontades e ideias e
dedicação". Esqueça, o quanto puder, os sonhos. A lengalenga do "pelo
sonho é que vamos" abstém-se de informar que a maioria de nós não vai
longe, ou no mínimo não vai onde pensou ir. Por regra, as "vontades",
as "ideias" e a "dedicação" cedem aos repetidos confrontos
com a realidade. E a realidade não se preocupa com o futuro da Maria. É
possível que a Maria venha a ser médica, excelente ou deplorável. Não é
impossível que venha a ser farmacêutica, dona de casa, poeta bissexta,
beneficiária do RSI ou, se o azar lhe cair em cima, socióloga. Apesar dos
esforços paternos em protegê-la, Maria, a existência é uma sucessão de
imprevistos.
O engraçado é que, com meros
17 ou 18 anos, a Maria pensa como um português crescido, convencido de que
compete ao Estado providenciar-lhe uma vida. Erro seu, minha cara, e dos
portugueses crescidos. A solitária competência do Estado consiste em humilhar
cidadãos e subtrair-lhes dinheiro. O resto, por cá, em Espanha ou na
Quirguízia, é consigo e com o acaso. Perceber esta evidência é alcançar a
responsabilidade que a Maria inclui entre as virtudes dos melhores médicos. E
das melhores pessoas.
Despeço-me agora, Maria.
Faz-se tarde e ainda me falta pedir ajuda ao prof. Marcelo (espero não o
apanhar na Coreia do Norte) para realizar o meu sonho de infância: ser
astronauta. Por enquanto, só consegui ser colunista. Colunista e hipocondríaco.
Até já, doutora.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 30-10-2016
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