sábado, 29 de outubro de 2016

[O cão tabagista conversou com…] Mariscal: “… então resolvi procurar trabalho. E por livre e espontânea vontade dirigi-me à Varig”

Nome completo:
João Batista L. Mariscal

Nome de guerra:
MARISCAL

Onde nasceu:
Rio de Janeiro


Onde estudou:
Colégio Lemos de Castro e Colégio Barcellos Costa.


Quando e onde começou a trabalhar?
Em 1962, em uma companhia de seguros no Rio de Janeiro.

Esses colégios localizam-se em Madureira, certo?
Correto.

Então, como foi a infância em Madureira?
Bem, nasci em Madureira em 5 de janeiro de 1943 e lá fiz meu curso primário e ginasial e vivi meus primeiros onze anos.

Foi uma infância feliz, pois podíamos brincar na rua tranquilamente já que não havia preocupação com qualquer tipo de violência, não havia, naquela época, maldade nas cabeças das crianças e diria até que havia uma certa inocência, brincávamos de pés no chão, na chuva, comíamos de tudo sem saber o que era agrotóxico (nem existia). Não foi uma infância rica mas foi bem feliz e com liberdade.

Avenida Ministro Edgar Romero, Madureira, 8 de maio de 2010
E de Madureira mudou-se para onde?
Mudei-me então em 1954/55 para o bairro de Abolição onde terminei meus estudos (curso científico), naquela época o ensino no Brasil era dividido em cinco anos de curso primário, quatro anos de curso ginasial e três anos de curso científico.

Morei lá até 1969, quando casei.
Foi ainda solteiro, morando na Abolição, que ingressei na RG, mas aí é outra história.

Era melhor o ensino naquela época, era mais sério, não acha?
Sim, sem dúvida alguma, os professores eram mais bem preparados, a qualidade do ensino público era bem superior à existente hoje, os alunos respeitavam os professores pois recebiam educação em casa e na escola.

Os pais preocupavam-se com o desempenho dos filhos, hoje não há educação em casa e os alunos agridem professores verbal e fisicamente e eles nada podem fazer graças a um famigerado Estatuto da Criança e do Adolescente que permite que os pequenos menores façam tudo e não sejam responsabilizados e nem punidos por coisa alguma.
Resumindo, os alunos fingem que estudam e os professores fingem que ensinam. Sorry.

Concordo.
Então você começou a trabalhar em 1962, tinha 19 anos…
Sim, na verdade, fui admitido em 1º de julho de 1962 em uma companhia de seguros, e isto me faz lembrar de um fato interessante, pois estava acompanhando um amigo que iria fazer um teste para admissão naquela empresa e fui encorajado por esse amigo e por um funcionário da empresa a fazer também o teste.

Acontece que eu não estava ainda procurando emprego, mas já que iria ficar esperando aceitei a fazer o teste, resultado; meu amigo não logrou exito e eu fui aprovado.

Comecei a trabalhar no dia seguinte por engano ou por coincidência, o fato é que lá fiquei até 26 de setembro de 1968. Bem, antes que você pergunte porque saí eu explico:
Nesses seis anos trabalhei na carteira de seguros contra Acidentes do Trabalho. Era um seguro obrigatório que todas as empresas faziam e que dava um lucro razoável às seguradoras. Então, o Governo resolveu encampar esta área do seguro, obrigando as empresas a fazerem as suas apólices no Instituto de Previdência Social, já a partir de 1969, e para os empregados daquele setor foi oferecido uma migração para o serviço público federal, o que por questões financeiras não me interessou.

Fui indenizado pelos meus seis anos de serviços e fiquei curtindo a vida enquanto deu, quando o dinheiro começou a diminuir, comecei a pensar no que iria fazer e foi quando disse para mim mesmo que iria trabalhar em empresa aérea.

Diga lá, o que foi “curtir a vida enquanto deu”?
Em poucas palavras significa "fazer o que quer, onde, como e quando quiser", enquanto tiver dinheiro para bancar suas despesas, sem depender de outrem.

Cena do filme "Curtindo a vida adoidado"


E aí, quando o dinheiro começou a acabar você disse para si mesmo que iria trabalhar em empresa aérea…
Exato, é por aí, não dava naquela altura para viver na dependência de mesada de pai e mãe, então resolvi procurar trabalho.

E por livre e espontânea vontade dirigi-me à Varig sem lá conhecer qualquer pessoa e sem que houvesse qualquer anúncio em jornal solicitando candidatos.

Fui orientado a dirigir-me ao setor de recrutamento onde marcaram uma entrevista com uma senhora chamada D. Lidia, pessoa de presença marcante, elegante, simpática e atenciosa, sua primeira pergunta foi "por que você escolheu a Varig?" e eu respondi "porque quero trabalhar e fazer carreira em uma empresa aérea brasileira."

Fiz um curso de atendimento em aeroportos e no dia 2 de dezembro de 1968 fui admitido na Pioneira.

E foi trabalhar onde?
No despacho do Galeão - GIGKK - comecei atendendo no check-in no turno da noite, das 18h às 24h e assim comecei uma nova etapa profissional.

Saguão do Galeão, 26-7-1968. Foto: Agência Globo

Nessa época e nesse horário saíam praticamente todos os voos internacionais da Varig…
Sim, ainda no antigo GIG, a maioria dos voos internacionais rumo norte (USA e EUROPA) decolava após as 22h…


… antigo GIG… Nova Divinéia, não era assim que chamávamos?...
Deixe-me explicar: antigo GIG refere-se ao aeroporto do Galeão antigo antes do AIRJ, e a Divinéia foi um terminal doméstico provisório construído para atender somente a voos domésticos devido ao aumento da demanda nos voos RG em virtude do crescimento da frota dos B-707 e a chegada dos DC-10. Esse terminal provisório operou até 1977 quando então foi inaugurado o AIRJ.



Trabalhou sempre no check-in?
Não, trabalhei no check-in durante alguns meses e depois passei a fazer balanceamento de voos até meados de 71, quando então fui promovido a Supervisor Júnior.

Lembranças boas dessa época?
Muitas. Foi nessa época, anos 70, como Supervisor Júnior (1971) e depois Sênior (1972), que tive a oportunidade de assumir a Gerência de alguns Aeroportos quer fosse apenas cobrindo férias dos gerentes titulares ou aquelas com reais chances de transferência efetiva.

Trabalhei como gerente substituto nas estações de LIM/PTY/CPT/UIO/GVA/LIS /LON/YUL E MEX.*
Cada período de cobertura durava pelo menos trinta dias. Há de se mencionar ainda que nos anos 70/80 ainda participava como representante da RG de reuniões anuais de Comitês da IATA como o Airport Services Commitee e o Passenger Procedures Commitee.

O primeiro elaborava procedimentos para o atendimento da aeronave e o segundo cuidava dos passageiros e bagagens.

Com as atribuições de supervisor mais as viagens de "replacement", participação nas reuniões IATA, dá para se imaginar a experiência que se adquiria a cada ano.

(*LIM: Lima; PTY: Panamá; CPT: Cidade do Cabo; UIO: Quito; GVA: Genebra; LIS: Lisboa; LON: Londres; YUL: Montreal e MEX: Cidade do México)

Dessas cidades todas da qual mais gostou ou guarda boas lembranças?
Olha, Jim, é dificil dizer qual mais gostei, cada uma tem um atrativo próprio, ofereceu oportunidades e experiências diferentes, mas eu poderia dizer que talvez Londres tenha sido a que mais me chamou a atenção.

Sempre quis conhecer Londres mesmo antes de entrar na Varig, e em 1977 quando de volta da Nigéria após 36 dias em Lagos, conheci a terra da rainha e realmente era tudo o que imaginava.

Posso também citar como experiência de vida a minha permanência na Nigéria, houve um lapso meu na resposta anterior e não mencionei minha estada em Lagos (LOS), onde pude ver bem de perto o que é a miséria de um povo vivendo em condições sub-humanas sem condições mínimas de higiene.

Frente a isso você passa a dar valor a mínimas coisas que tem em casa e não percebe, foi um período que me marcou muito.

Esta sua última frase faz-me lembrar um velho ditado “Você diz que não gosta de bananas, olhe para trás: tem gente comendo as cascas”… triste.
Quando se aposentou?
Como disse anteriormente, em 1º de outubro de 1971 fui promovido a Supervisor Júnior de Tráfego, e em 1º de novembro de 1972 galguei mais um degrau a Supervisor Sénior de Tráfego.

Em 1º de agosto de 1981 assumi o cargo de Assistente da Superintendência de Aeroportos Internacional (GIGKD) ficando assim desligado do despacho de passageiros (GIGKK), porém com uma abrangência maior, pois atingia todos os sistemas de aeroportos operados pela Varig.

Em 1º de abril de 1992 fui nomeado Gerente do Departamento de Baggages Services e em 1º de maio de 1992 fui transferido para São Paulo quando então, em 30 de agosto de 1994 me aposentei.

Me diga uma coisa, quando você era Supervisor ou Gerente de Aeroporto era você que liberava os GCs?
O controlador de voo liberava o número de GCs a serem atendidos obedecendo ao número assentos disponíveis, bem como a quantidade de refeições a bordo. O Supervisor autorizava o atendimento observando a prioridade de cada um, mencionada no bilhete, ou a uma eventualmente necessidade urgente…

Aposentou-se pelo Aerus?
Sim, em 31 de agosto de 1994. O AERUS complementava nossos salários e tínhamos um aposentadoria tranquila até que em abril de 2006, com a quebra da Varig, começou a reduzir o pagamento da complementação, inicialmente em 50% e foi reduzindo até chegar a pagar, a partir de abril de 2009,  apenas uns 10%  e, em alguns casos, apenas 8% daquilo que era devido.

Somente a partir de setembro de 2014 foi que começamos a ter a complementação regularizada apoiada em uma "Antecipação de Tutela" obtida na Justiça.

Hoje estamos com os salários atualizados e regularizados até o final do ano, já para 2017 teremos que esperar que a verba do Governo Federal para o Aerus seja incluída no Orçamento da União para 2017. 

(NdE: a verba já está incluida no Orçamento da União, conforme pode ser lido em LDO 2017 reserva quase seiscentos milhões de reais para o Aerus)

Depois da aposentadoria dedicou-se a alguma atividade?
Não, sou e estou aposentado até hoje, deixei o meu lugar para os mais jovens.

Mas tem viajado?
Sim aproveitei os TKT's RG viajando pelo Brasil, USA e Europa até 2006, quando a RG parou de operar. Após o fechamento da RG tive que reduzir um pouco as viagens já que não dispunha mais dos bilhetes de cortesia (free). Mesmo assim, continuei viajando anualmente à Europa pois meu filho já estava vivendo na Inglaterra (2004/2010).

Você acha que a RG fechou ou faliu?
Em minha opinião, "faliu" devido a má gestão administrativa, falta de interesse do governo em ajudá-la para beneficiar a TAM, além de outros contratempos como concorrência predatória das empresas americanas, falta de coragem para tomarem medidas restritivas na malha de voos, no quadro funcional, (tínhamos o dobro do número de funcionários que deveríamos ter, cerca de vinte mil), quantidade de aviões dispendiosos, etc. Somando tudo isso ela não conseguiu sobreviver.

Voltando às viagens, qual será a próxima?
Em princípio pretendo viajar a NYC em final de novembro, sem um motivo específico. Talvez em janeiro passar uma semana no nordeste brasileiro, e em junho, como não poderia deixar de ser, ir a LIS.


Sintra, 16 de abril de 2016, 1º Encontro Europeu de ex-Trabalhadores da Varig, Familiares, Amigos...

Tem alguma pergunta à qual você gostaria de responder?
Não, mas certamente há muitas perguntas sem respostas tais como:

Por que nossos administradores deixaram acontecer a quebra da Varig?

Por que deixaram o quadro funcional atingir um número incontrolável? Segundo a IATA, o número ideal de funcionários em uma empresa aérea é de cem por avião, como nós tínhamos cem aeronaves, o ideal seria dez mil funcionários e no início dos anos 90 tínhamos mais de vinte mil.

Por que insistiram em manter uma frota de B-747 quando as outras empresas estavam devolvendo esse tipo de aeronave por ser muito dispendiosa e pouco rentável?

Por que o governo resolveu não ajudar a Varig em favor da TAM que hoje já não existe pois foi adquirida pela Lan Chile?

Meu caro, eu cumpri a minha parte, foram vinte e seis anos dedicados à Varig e a ela agradeço por tudo que consegui na vida. Lamentavelmente acabaram com a Empresa que foi orgulho nacional e PIONEIRA na aviação comercial brasileira deixando seu lugar vazio até hoje.

Obrigado, Mariscal!

Conversas anteriores:

11 comentários:

  1. Tive o privilegio de compartilhar meu trabalho com o amigo Mariscal, ao qual, além de puxarmos a corda para a mesma direção havia um respeito mutuo e admirável. MARISCAL disse tudo que precisava ser dito, sempre respeitando a ética da profissão. Eu e Mariscal conhecemos muito bem o Velho Galeão e a Divineia. Se não fizemos mais pelo engrandecimento da Aviação Comercial Brasileira, porque sempre havia um empecilho daqueles que queria ver a VARIG e suas Afilhadas irem por água abaixo.

    Nelson Schuler
    VARIG/SATA

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    1. João Batista Mariscal30 de outubro de 2016 às 17:51

      Obrigado amigo Nelson, passamos uns momentos bons outros difíceis o velho
      GIG e no AIRJ, mas conseguimos sobreviver. Foi um prazer trabalhar com voce.

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  2. É verdade que a VARIG faliu tendo um crédito de 4 bilhões junto ao Governo Federal?

    Jorge E. M. Geisel

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    1. João Batista Mariscal30 de outubro de 2016 às 17:52

      Sim, porem se voce tem um credito mas não recebe, voce nada tem, a não ser promessas e promessas não pagam dividas.

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  3. HI Jim. Grande entrevista e ótima reposta.
    Me lembro que me aposentei em 94 também. E passei pelos mesmos episódios.
    Minha solução foi aderir ao Mvto Acordo Já. E a vitória veio.
    Obrigado.

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  4. Maravilhosa entrevista!
    Boas recordações.
    Miriam Loureiro

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  5. Parabéns, Jim! E ao Mariscal também! Muito boa a entrevista!
    Quando comecei a voar, claro na VARIG a grande e Pioneira, foi no Galeão Antigo, tínhamos o Hangar 9, onde ficava o DO, e depois na Divineia! Estas lembranças são de grande valor! E o quanto a VARIG contribuiu para a Aviação Brasileira, é imensurável, estas empresas hoje receberam tudo de "mão beijada", e as nossas Divisas Financeiras, hoje vão todas para as Empresas Estrangeiras aos milhões de R$!
    Pois as que estão aí, hoje, não competem por falta de qualidade e competência!
    Vamos em frente!
    Abraços!
    Heitor Volkart

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  6. Excelente entrevista, Jim . Trabalhamos juntos , eu e o Mariscal, desde que entrei na Varig, em 1970 ! A vida profissional dele na Pioneira é muito parecida com a minha ; trabalhamos naquela empresa aérea pelo mesmo período : 26 anos. Uma coincidência!
    Quando entrei ( Agente em preparo) no Galeão velho , meu amigo João fazia balanceamento de aeronaves ( Weight & balance) em um canto bem iluminado e aconchegante da sala da gerência . Aquilo me incentivou , para que mais tarde eu me tornasse também um "balanceador". Até hoje trocamos ideias - mais por whatsapp , do que que via e-mail...
    As perguntas finais feitas pelo colega são também as minhas indignações .
    Certamente o João executou com ética e rigor as suas tarefas . Eu, idem, as minhas . Acho que todo aquele magnífico grupo deu de si o melhor!
    Como disse , certa vez, um gerente assistente:
    " Na aviação não há lugar para amadores! "
    Estamos orgulhosos de ter sido parte da maior empresa aérea brasileira da América do sul! É o que levaremos para depois da grande travessia.
    Parabéns ao amigo João Batista!
    Vendo as fotos do Galeão antigo bateu uma saudade enorme...

    Abração.

    Sidnei Oliveira
    Assistido Aerus RJ

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  7. Ah ! Um adendo à entrevista :

    Nova "DIVINEIA"... o apelido dado ao terminal doméstico provisório foi por causa da novela da época : " Saramandaia" , que tinha a localidade fictícia como vilarejo distante da capital ( como se fosse um fim de mundo...).
    A direção da Infraero fazia de tudo para que não se mencionasse o apelido do terminal pela fonia dos walkie-talkies ! Mas não teve jeito:
    A moda pegou .... rsrsrs
    Sidnei

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