Aparecido Raimundo de Souza
1
REGO PENTEADO da Silva
Buscapé tocou a campainha e esperou que a moça loira de olhos verdes, entrajada
elegantemente numa blusa laranja sem mangas e sainha azul, curtinha (que
divisava através da porta envidraçada) se levantasse da mesinha da recepção e
acorresse atendê-lo. Tímido até dizer chega, em face de ser zarolho de
nascença, não sabia explicar como chegara até ali e, pior, onde arranjara uma
boa dose de coragem para enfrentar a jovem que sorria com os dentes brancos e
bonitos contrastando com uns lábios maravilhosos, sem falar na mãozinha
delicada indicando, mesureira, um lugar na poltrona enorme de couro vermelho
vinho.
— Bom dia, cavalheiro.
Meu nome é Flávia. Queira entrar e se acomodar, por gentileza.
2
Ele obedeceu um pouco
desconcertado e sem graça. Mas se manteve firme. Não podia simplesmente dar
meia volta e correr.
— Pois não, em que
posso lhe ajudar?
— Dona Flávia, é sobre
o anúncio.
— O senhor veio
indicado por alguém?
— Sim.
— Por quem?
— Por mim mesmo.
Flávia voltou a sorrir
com o mesmo entusiasmo de antes.
— Viu nossas chamadas
nos jornais?
— Nem sabia que vocês
haviam colocado!
— Tudo bem. Como
chegou até aqui?
Rego Penteado da Silva
Buscapé apertava as mãos, nervoso. Sua tremura pulava como um canguru
desassossegado. Logo estaria suando frio.
— Ia passando e vi a
tabuleta.
— A placa?
— Isso. A placa.
— Já conhece nossos
serviços?
— Não, não conheço.
Gostaria que a senhora...
— Senhorita...
—
Desculpe, senhorita.
— Assim está melhor.
Aceitaria uma água gelada, um café ou um suco?
— Os dois primeiros.
Se não for incômodo.
— Será um prazer.
Flávia se enveredou
por uma porta e, minutos depois, retornou com um copo d’água e uma xícara de
café, numa bandeja de aço inoxidável quadrada. Rego Penteado da Silva Buscapé
virou o líquido de uma só vez. Fez o mesmo com o café. Uma espécie de choque
elétrico circulava por toda a espinha. Logo se transformaria em medo gritante.
— Como é seu nome?
— Rego Penteado da
Silva Buscapé. Buscapé tudo escrito junto...
—
Muito bem, seu Rego Penteado. Posso lhe chamar assim...?
—
Prefiro Buscapé.
— O senhor aceita mais
água, outro café?
— Não, senhorita.
Estou satisfeito. Com relação a como me chamar, prefiro ser tratado como
Buscapé, sem o tracinho separando o Busca do pé. É menos feio. E por tudo
quanto é sagrado, esqueça o seu e o senhor.
— Seu Rego, o
senhor... você quer dizer que o Buscapé é pouco usual. Acertei?
— Penso diferente da
senhorita. Diria que é horrível...
—
Não. Não é! Apenas um pouquinho destacado ou divorciado dos sobrenomes
habituais.
— Prefiro que a senhora...
que a senhorita me chame de Buscapé. Sem o tracinho separando o Busca do pé.
— Eu poderia optar?
— Para quem?
— Não entendi.
— A senhorita falou em
apitar. Vai apitar para quem?
3
Flávia se desfez
inteira em seu momento mais deslumbrante e encantador. Irradiava felicidade por
todos os poros. Soletrou vagarosamente, letra por letra (o... pe... te... a...
erre), fazendo biquinho.
— O.P.T.A.R...
—
O que é isso?
— Optar significa
escolher. Posso escolher?
— Escolher o quê?
— Entre lhe chamar de
Rego, de Penteado ou só de Buscapé.
— Ah, claro. E como
faria tal coisa?
— Simples. Chamarei o
senhor... você de Penteado. Não cairia ou não soaria mais elegante?
— A senhorita tem
razão.
— Pois bem, seu
Penteado. O senhor... você já tem uma ideia predeterminada do que ela vai
vestir?
— Senhorita Flávia,
ela quem?
—
Ué! A sua noiva...
—
Vocês não arranjam?
— Claro que
arranjamos, porém, o senhor... você ou ela, ou os dois, terão que nos informar
como será o modelo. Sugiro uma listinha básica... olhe ao seu redor. Observe
que temos um vasto mostruário à inteira disposição de sua futura esposa...
4
Rego Penteado da Silva
Buscapé coçou a cabeça. O coração, dentro do peito, batia descompassado. O suor
escorria e empapava a camisa. Nessas horas, seu olho torto criava uma espécie
de morcego irrequieto sobrevoando seu medo com premonições apocalípticas.
— Para mim a garota
pode ser e vir de maneira bem simples. Não faço muita questão. O que importa é
o recheio, o conteúdo...
— O senhor... você é
muito espirituoso. Quer uma noiva vestida simploriamente, porém com elegância e
garbo. Leve em conta que toda prometida deseja ostentar pompa, luxúria,
soberba, chamar, enfim, a atenção. E aqui, meu prezado, ela se sentirá uma
rainha.
—
Olhe, se ela pudesse vir sem nada... eu adoraria...
Flávia se desmanchou
de novo em sorrisos de alegria e felicidade. Via naquele cliente aparentemente
besta e débil de espírito, um “pato” em potencial. Bateria a meta de vendas sem
fazer esforço. Quando as outras duas vendedoras chegassem, ela estaria
comemorando o sucesso.
— Qual a sua idade?
— Vinte e dois anos.
— E a sua eleita?
— Eleita? Que eleita?!
— Sua namorada.
— Acho que aí pela
casa dos vinte.
— Bem, toda mulher
nessa idade, seu Penteado... gosta de casar de branco, de véu e grinalda,
muitas flores no altar, daminhas carregando as alianças, uma porção de
padrinhos no púlpito, latinhas vazias amarradas no para-choque traseiro do
carro. Essas coisinhas bobas que deixam marcas profundas para o resto da vida.
O senhor... você não irá querer decepcionar sua amada no dia mais feliz de toda
a sua vida. Aliás, seu... aliás, Penteado, saiba, de antemão, que casar com
elegância e glamour é o sonho de todas nós.
5
— Entendo. Senhorita
Flávia, o que eu quero saber é o seguinte: como é que vocês arranjam?...
—
O senhor... você pode sugerir escolher, dar palpites desde o vestido aos
sapatos...
—
Sei, sei. E quanto à garota?
— Que garota?
— A que vocês vão
providenciar para mim?
— Pois é, como eu
acabei de explicar. O senhor... você escolhe ou os dois, em conjunto, e
procuram chegar a um consenso.
6
Rego Penteado da Silva
Buscapé permaneceu um tempo olhando para uma dezena de manequins ricamente
vestimentados com belos e impecáveis trajes para um cerimonial acima de
qualquer suspeita, expostos com elevada suntuosidade nos fundos da peça. A
caolhice parecia ter se acentuado de forma mais densa e severa.
— Dúvidas?
— Acho que sim. Eu
pensei que vocês arranjassem a noiva.
— Essa é a nossa
obrigação. Arranjamos a noiva da cabeça aos pés. Basta que nos diga como quer
que façamos...
—
Eu? Dizer?!
— Perfeitamente. Quais
as suas exigências, vamos colocar assim... quais as suas exigências?
— Veja bem, senhorita
Flávia. Como expliquei logo que entrei, estou à procura de uma moça até vinte
anos, que seja da minha altura e peso. Não me incomodo se morena ou loira.
Gorda ou magra. Feia ou bonita. Católica ou adventista. Macumbeira ou sem
religião. De preferência sem filhos, carinhosa, meiga, que me respeite, que não
me traia e acima de tudo, que me ame. Afinal, não sei se reparou, sou estrábico
do olho direito.
7
Flávia quase teve um
treco. Ficou boquiaberta. O sangue gelou.
— Senhor... amigo
Penteado. Desculpe. Acredito estar havendo um pequeno engano aqui...
—
Como, engano? O que a senhorita quer me dizer com engano?
— O senhor... você
está procurando por uma namorada?
— O tempo todo...
Flávia sorriu. Desta
vez, com certa tristeza. Seu possível “pato” acabava de voar para longe de seus
objetivos da depenação e da bateção de meta para as vendas do mês.
—
Seja franca, por gentileza.
— Nós não cuidamos
desse assunto.
— A propaganda ali
fora fala que vocês arranjam...
—
Senhor, no nosso outdoor está
escrito: “ARRANJAMOS NOIVAS”, ou seja, preparamos, aprontamos, vestimos,
embelezamos, as meninas para a cerimônia...
— Então, dona...
—
Pelo que entendi o senhor está à cata de uma agência de matrimônio. Aqui
é uma casa especializada em noivas. Repetindo, seu Penteado, ela entra aqui e
sai prontinha para os braços do altar e o aconchego do futuro marido.
8
Rego Penteado da Silva
Buscapé saltou do sofá apavorado, envergonhado e muito nervoso. A negativa
dela, com relação a seus objetivos, soou definitiva, caiu por sobre sua cabeça
como um fardo pesado. Seu esqueleto tremia tanto que seria capaz de mijar em
pé, sem abrir as calças, e sem tempo para posicionar o pinto, confortavelmente,
de modo que não molhasse a tampa da bacia da privada.
— Perdão, senhorita,
mil desculpas...
—
Não por isso. Acontece. Desculpe não poder ajudá-lo. Boa sorte.
9
Flávia acompanhou a
criatura de volta à porta. Ao se ver sozinha teve um acesso incontrolável de
choro. Desabafou aos soluços.
— Infeliz desgraçado!
Boa sorte o caralho. Torto dos infernos. Puta que me pariu... por certo mereço
passar por isso. Devo ter cagado feio no pau de Santo Antônio.
10
Na calçada, por sua
vez, os passos apressados, Rego Penteado da Silva Buscapé se flagrou arrasado e
destruído. Lembrou que não respondeu sequer ao “Volte sempre e felicidades” que
lhe desejou cortesmente a bela loira de olhos verdes e sainha azul curtinha.
Como costumava professar a galera de amigos da sua rua, antenada nas coisas da
modernidade, o borra-botas “vazou no trecho o mais rápido que seus pés
permitiram”. Se não o fizesse, morreria mil vezes de vergonha, além da que
acabara de viver e sentir na pele. Sem contar que logo se deixaria abater por
uma deprimência triste e alquebrada, se aquilatando, em vista disso, mais
infeliz e desafortunado que o estrábico Mesrour de Voltaire.
AVISO AOS
NAVEGANTES:
PARA LER E PENSAR, SE O FACEBOOK, CÃO QUE FUMA OU OUTRO SITE QUE REPUBLICA
MEUS TEXTOS, POR QUALQUER MOTIVO QUE SEJA VIEREM A SER RETIRADOS DO AR, OU OS MEUS
ESCRITOS APAGADOS E CENSURADOS PELAS REDES SOCIAIS, O PRESENTE ARTIGO SERÁ
PANFLETADO E DISTRIBUÍDO NAS SINALEIRAS, ALÉM DE INCLUÍ-LO EM MEU PRÓXIMO LIVRO
“LINHAS MALDITAS” VOLUME 3.
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista, de Divinópolis, nas Minas Gerais, 7-2-2017
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