Paulo Tunhas
O “homem de esquerda” ainda vive no
interior do mito da Revolução francesa, que lhe garante uma ilusória
inteligibilidade da história. A qualquer momento, essa ilusão salta de novo
para a boca de cena
“Depressa, que já nos viram”,
costuma dizer um amigo meu brasileiro, quando atravessamos a rua e os carros
aparecem ao longe. Por estes dias moralistas de sermões pregados
quotidianamente, ainda por cima em muitos casos por gente que crê saber muito
bem de onde a história vem e para onde vai certinha, tenho pensado na frase do
meu amigo. É que, dando-me mal com muitos aspectos do nosso tempo, dá-me de vez
em quando para ter medo de ser atropelado pelos mensageiros do sentido da
história.
Felizmente, há um traço que nos
permite identificá-los sem grande dificuldade e assim evitar os riscos mais
imediatos. Qualquer pessoa o reconhece sem problemas de maior. É a facilidade
sempre surpreendente em não ver problemas nas coisas do mundo quando se trata
de proclamarem as suas certezas, que são sempre uma prova ostensiva de uma
moralidade superior à do comum dos mortais. E essas certezas permitem definir
sem margem para dúvida os inimigos, exatamente aqueles que, por uma razão ou
outra, têm o hábito de refletir sobre o risco que certas situações apresentam e
de pensar que qualquer ação os deve ter em conta. Claro que a “ética da
convicção”, como se diz, convive muitas vezes com uma sabedoria política
mundana que permite toda a espécie de jogos e joguinhos, mas este aspecto é,
tanto quando possível, disfarçado o mais das vezes. Por cima, na bela
aparência, reluz a virtude, resplandecente e verbal.
A lista que se poderia
estabelecer dessas inabaláveis convicções e da cegueira face aos problemas
reais que a sua satisfação inteira engendraria reduziria o célebre catálogo das
conquistas de Don Giovanni (Ma in Ispagna son già mille e tre) a uma
insignificância máxima, ao alcance do mais caseiro ser humano. De resto, como
alguém o notou, há algo de efetivamente donjuanesco e predador no apetite
incontido pelas causas justas que é hoje o pão nosso de cada dia. Por isso,
apenas três exemplos.
Face à crise dos refugiados,
há apenas uma atitude possível: a sua aceitação plena e incondicional. Quem
emitir reservas, por ténues que sejam, à bondade de tal programa, por razões na
aparência plausíveis (terrorismo islâmico, em primeiro lugar), é imediatamente
qualificado de xenófobo e racista. O grau de desprezo pelas pessoas comuns que
se preocupam com a alteração do mundo à sua volta atinge máximos nunca vistos.
Não, não há problema algum e tal preocupação tem apenas origem na ignorância
mais extrema e condenável.
Quanto à Catalunha, o
nacionalismo vê-se, contrariamente ao que se passa noutros casos, positivamente
idolatrado. Todo e qualquer respeito pelo direito vê-se mandado às favas. A
questão, diz-se, é unicamente política, como se uma das condições da boa
política não fosse exatamente o respeito pelo direito. O ideal subjacente
parece ser um mundo de direitos sem direito. Além disso, a catástrofe económica
que muito verossimilmente resultaria da independência, não merece ser tida em
linha de conta, mesmo que ela afetasse em primeiro lugar, como de costume, os
mais desmunidos. Que interessa isso? Quem por cá pretender medir os riscos
arrisca-se fortemente a ser atacado por aqueles que apelidavam de
“colaboracionistas” quem, há poucos anos, manifestava compreensão pela posição
de Angela Merkel em relação à Europa (lembram-se dos bigodinhos de Hitler
pintados nos retratos dela?) e acusado de ambicionar a criação de uma nova
Legião Portuguesa destinada a defender o franquismo ainda vigente, embora
tenuemente disfarçado, em Madrid.
Por fim, a querela
omnipresente do assédio sexual. Pelo caminho que as coisas vão, não haverá
gesto ou palavra que não sejam criminalizados. Se correr tudo como muitos
querem, o caminho arrisca-se a ir direitinho do assédio à acédia sexual.
Tente-se sugerir algum bom senso e logo se é acusado de querer perpetuar a
vileza de dominações antigas e violências imemoriais. Mesmo que – tal como com
o problema dos refugiados, por exemplo – se reconheça o mais claramente
possível o problema e se acredite na urgência de o resolver. Sem a exibição de
um entusiasmo justiceiro, isso de nada vale.
Dir-se-á que tudo isto são
medos despropositados e intrinsecamente “reacionários”. Francamente, não creio.
O medo é uma atitude política legítima e até fundamental, por muito que isso
choque as costumeiras virilidades revolucionárias. É verdade que,
provavelmente, cada um tem a sua própria hierarquia de medos e que essa
hierarquia define o seu “carácter político”. O problema não está, no entanto,
no confronto entre essas hierarquias, que é susceptível de diálogo político,
mas no fanatismo daqueles que se recusam ao diálogo e, sobretudo, ao cálculo
dos perigos, exatamente porque as suas convicções não só dispensam como tornam
nocivos quaisquer atos reflexivos. Vivendo num plano mítico e habitados por um
sentimento palpável da inteligibilidade unívoca da história, só podem ter um
desprezo indisfarçável pelo comum dos mortais.
Esta conversa, é claro, vem de
longe. Num capítulo célebre do seu livro O pensamento selvagem,
publicado em 1962, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss analisou o teor
geral da filosofia da história desenvolvida por Jean-Paul Sartre no primeiro
volume (o único publicado em sua vida) da Crítica da razão dialética.
Mostrou, entre outras coisas, que Sartre (e o “homem de esquerda” em geral)
vive ainda no interior do mito da Revolução francesa, que lhe garante uma
ilusória inteligibilidade da história. Não parece que as coisas tenham mudado
assim tanto desde essa altura. A qualquer momento, essa ilusão salta de novo
para a boca de cena. Os objetos que essa inteligibilidade pretensamente captura
mudaram, sem dúvida. O proletariado desapareceu. O que não mudou foi o
fanatismo da convicção. Nem a absoluta indiferença relativamente aos resultados
práticos das suas ações.
“Depressa, que já nos viram” é
realmente um bom conselho. Eles vêm a acelerar.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
2-11-2017
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