Maria João Avillez
Quem como eu testemunhou “in loco” o melhor
do país sentado no hemiciclo de S. Bento em 1975 não pode deixar de tropeçar
hoje numa abissal diferença de almas e procedimentos.
1. Conforme me teria
competido e manda a deontologia de quem leva este escrevinhar a sério, não
havia meio de me interessar. De abrir uma televisão, alinhavar duas ideias, ter
uma opinião. Nem ao menos ligar para o telefone certo e informar-me de uma vez
por todas sobre como ia a atual corrida à liderança no PSD.
Havia um alheamento, um misto
de preguiça e descrença que uma quadra de festas mais agreste que natalícia não
chegavam para explicar.
E, no entanto… tratava-se do
PSD, o partido de quem sempre estive próxima, fossem altas ou baixas as marés.
O partido mais transversal da sociedade portuguesa, que mais reformou o país,
que mais maiorias políticas absolutas conquistou sozinho para o seu eleitorado
e onde nunca precisei de me filiar (filiação só no Benfica) para o eleger como
morada política. Rendendo-me (tardiamente, hélas) a Sá Carneiro, homem de alma,
mas hoje deixaram de se fabricar; percebendo logo em 1985 que Cavaco viera para
ficar; testemunhando de perto a saga de Passos Coelho a contas com um país esburacado,
mas, afinal, contas tão bem-feitas que o conduziram a uma segunda vitória
eleitoral.
2. Há mais de 40
anos que o PSD é acusado de não ter uma matriz ideológica clara, definida, uma
etiqueta de identidade, como as das malas. Mas como tê-la se o partido começou
por ser uma resposta ao país e volto a reutilizar aqui esta expressão: o PSD,
em maio de 1974, foi a resposta dos “homens bons da terra”. Existia por essa
altura em Portugal um corpo intermédio da sociedade que começara a ganhar
consciência cívica e política com a Ala Liberal, a Sedes, a JOC e a JUC,
encontrando diversos espaços de intervenção. Não se revia numa solução marxista
ou qualquer projeto que tivesse como fim o comunismo ou o socialismo. Sim, já
aqui o escrevi, mas repito-o hoje, nunca é demais lembrar como este parto
político foi singular, de longe o mais singular da democracia portuguesa. O PPD
eram profissionais liberais, médicos, advogados, mas também pequenos
proprietários, pequenos comerciantes, uma malha forte de gente que tinha já uma
independência material ou profissional, em suma. O partido começou por isto e
por se implantar assim, nacionalmente, primeiro no Norte, depois país fora, e
só falo do que vi. E quando procedeu à sua própria exteriorização, ela ocorreu
ao contrário: não como nos outros partidos que iam nascendo de dentro para
fora, mas de fora para dentro e sem uma ideologia pré-existente. Era como que
uma impressão digital doutrinária originada pelo cruzamento do que fora o
pensamento da Sedes, do que era a doutrina social da Igreja, do que significara
a Ala Liberal e não é senão esta mescla que melhor traduzia o pensamento
político dos primeiros homens do PSD.
E depois, claro, havia
Francisco Sá Carneiro. Ou havia sobretudo Sá Carneiro que interpretou o que de
melhor havia no país, amalgamando energias e vontades — também me lembro disso
— ao mesmo tempo que tecia o que hoje poderíamos apelidar de socialdemocracia
portuguesa, na altura muito marcada pelo humanismo, o personalismo, pelo
primado da pessoa. É certo que ainda hoje, quatro décadas e muitas vitórias
depois, tudo “isto” é acusado de ser pouco, pobre ou nada, falta a etiqueta.
Mas “isto” não é senão o resumo daquilo que era o genuíno pulsar deste vastíssimo
quadro de gente que elegeu as cores alaranjadas do partido e se acolhia naquele
porto de abrigo político. Os cânones da ideologia eram-lhes relativamente
indiferentes.
3. E hoje? Hoje,
duas coisas: houve uma brutal deterioração da classe política, que não é de
agora, mas vem tombando em plano inclinado, um “deslasssamento” e sabe Deus
como não alinho na permanente desclassificação dos políticos. Quem como eu
testemunhou “in loco” o melhor do país sentado com empenho e brio no hemiciclo
de S. Bento em 1975 não pode deixar de tropeçar numa abissal diferença de almas
e procedimentos. Além disto, que é imenso, a volatilidade — do tempo, das
coisas, da política – é sulfúrica. Políticos e partidos surgem, mas também se
somem. Grandes formações partidárias já se sumiram dos mapas políticos europeus
(quem sabe até das nossas aflitas memórias). E outros, vindos do breu do
desconhecimento, conquistam países e poder. Não será exatamente o caso de Macron,
que fora ministro de Hollande, tinha sólida formação económica e currículo
intelectual, mas o seu feito é apesar de tudo extraordinário: em menos de um
ano ergueu um movimento do vazio absoluto o qual, como num passeio sem arestas
nem escolhos, o levou direto ao Eliseu. Ambos – o movimento e ele — tornaram-se
donos da França e apreciariam ser donos de mais.
Não sei o que ocorrerá no PSD,
ninguém arrisca um vaticínio nem sequer sobre quem ganha ou perde daqui a dias.
O PSD é forte demais para desaparecer, mas outros partidos também ditos “indispensáveis”
à própria respiração política dos seus respectivos países estão hoje no
cemitério.
Pequena nota a propósito, mas
não despicienda: se já repararam como Marcelo “bebe” Macron, se inspira em
Macron e gostaria de ser “um” Macron — e isto faz algum sentido — podemos
comprar já um bilhete na primeira fila.
4. Isto dito, faço
parte de um grupo, não sei se grande se pequeno, que teria gostado de ver a
geração dos 40 anos saltar para a cabeça do PSD. Constato, porém, que de cada
vez que alguém propõe — ou defende — o mesmo, logo o coro dos Velhos do Restelo
começa a cantar: “Jovem? Quem, se não há ninguém? “
Nunca há ninguém até haver
alguém, mas a permanente reedição desta (desculpabilizante) dúvida atirada como
uma certeza tolhe escolhas, inquina a política, atrapalha o futuro. De facto
nenhum quarentão recomendável — e há uma boa meia dúzia deles — se chegou à
frente. Estão à espera? Se estão, ao menos que saibam que se cada um não cria
as suas próprias circunstâncias e se bate por elas, não há política para
ninguém e, no caso, olhem para Santana ou Rio que em tempo as criaram. Não
tenho por onde excluir que não possa haver boas iniciativas na próxima
liderança do PSD (e admiro sempre quem se desinstala ao ponto de galopar uma
campanha eleitoral, entalado entre a temível — e ambígua — oligarquia que lá
sobrevive e um aparelho que apesar de porventura menos mal que a oligarquia
deveria trocar a sua manifesta fome de lugares pelo apetite de servir a
política e através dela, o país).
O que sei é que o momento
talvez pedisse um voo de águia de outra geração, mas, garantem-me – surpresa –
que boa parte dela se transferiu para a campanha de Santana Lopes. Com a
independência de quem tem uma vida bem-sucedida fora da política ativa; o
mérito pessoal e a utilidade de um bom currículo na investigação,
empreendorismo, ciência, Universidade, profissões liberais, start-ups ou
autarcas com lideranças já notadas e bem cotadas. Será assim? Se for, a livre
escolha agora feita por estes trintões ou quarentões não deixa de ser um sinal.
Ter a qualidade no topo da escala das prioridades na prática da cidadania não
pode obviamente deixar de contaminar a atividade política se esse vier depois a
ser o caminho.
5. Tem-se ouvido
reclamar das “trapalhadas” de Santana. É natural: primeiro porque existiram e
não há tanto tempo; segundo porque a esquerda prefere-lhe Rui Rio e ela lá sabe
com o que conta. Acrescento, porém, uma nota não anódina sobre trapalhadas,
casos, chatices: são sempre alvo de acusação, publicitação e ampliação se a sua
autoria couber à direita. Exagero? Então que dizer das trapalhadas de Sócrates
e das de Costa (não vale a pena enumerá-las, pois não?)
PS: Pode
discordar-se, concordar-se, aplaudir-se ou vituperar o verbo e a atitude de
José António Saraiva (com quem durante anos trabalhei no Expresso e conheço
bem). Já com o inconcebível arrazoado de uma organização chamada CIG que me
pareceu assaz desorganizada mentalmente dado o lamentável currículo público já
exibido, só se pode discordar. O desequilíbrio entre uma “atuação” e outra não
me parece de somenos (mas é para o que os tempos estão).
Título e Texto: Maria João Avillez, Observador, 9-1-2018
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