O adversário, o Partido Democrata,
começou a evoluir, já desde Obama, em direção a um neo-socialismo e a uma
fixação em políticas identitárias e num ambientalismo radical que beneficiam
Trump.
Paulo Tunhas
Gostei do discurso de Trump ontem de tarde. De
forma sóbria, e com uma gravidade que ganha uma eficácia suplementar pelo
contraste com o seu estilo habitual, disse o que havia a dizer sobre o
terrorismo teocrático do Irão e em particular sobre o facinoroso general
Soleimani, esse grande humanista recentemente desaparecido, e terminou declarando
o seu desejo que o povo do Irão venha um dia a gozar de um grande futuro, com
prosperidade caseira e harmonia com os outros povos.
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Foto: Win
McNamee/Getty Images
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Enfim, cada um é como é, e os
artigos exaltados que li esta semana sobre o fim do mundo que se avizinha por
culpa exclusivíssima de Donald Trump foram escritos por gente que costuma
sempre sobre a matéria escrever artigos exaltados, tal como os artigos refletidos
sobre o conflito entre os Estados Unidos e o Irão são da autoria de gente que
tem por hábito escrever artigos refletidos. É curioso, não é?
Mas voltando à biblioteca de
Costa Ribas, aproveitando a intimidade que ele nos confere. Um livro que lá não
vi foi o do historiador militar e classicista Victor Davis Hanson, publicado no
ano passado e intitulado The Case for Trump (Basic Books).
É um livro bem interessante que, receio, ao contrário dos de Michael
Wolff e Bob Woodward, não será traduzido em português. O livro lida com a
presidência de Trump até 2018, procurando descobrir os padrões das decisões do
presidente americano e medindo sucessos e insucessos, tanto de Trump como da
oposição a Trump. Dá o retrato vivo de um mundo e alivia da vulgata
político-jornalística que é a nossa dieta quotidiana. Por isso, não é inútil
dar dele uma ideia geral em poucas linhas.
Hanson refere os notórios
sucessos de Trump no domínio da economia e na baixa do desemprego, algo que é
indiscutivelmente importante e representa uma nítida melhoria face à
presidência de Obama, o que vai declaradamente contra as catastróficas
previsões do universalmente admirado Paul Krugman, segundo o qual os mercados
rapidamente entrariam em colapso mal Trump entrasse em ação. Em certos pontos,
é claro, há continuidades mais ou menos manifestas com a presidência anterior
(incluindo Hillary Clinton), como, por exemplo, no combate à imigração ilegal
(de 11 a 22 milhões, segundo os mais diversos cálculos), embora a eficácia de
Trump tenha sido consistentemente maior. Ou em matéria de intervenções
externas.
Já Obama diminuíra a sua
frequência, e Trump, pouco disposto a combater guerras por outros, diminuiu-a
ainda mais, embora tenha levado o ISIS a sério, contrariamente a Obama, que também
não consta que se tenha importado muito com a invasão russa da Crimeia.
A diferença fundamental reside
na atenção ao declínio e empobrecimento das zonas interiores dos Estados
Unidos, constituídas por aqueles que a elite democrática e um bom número de
republicanos haviam não apenas esquecido como desprezado, os célebres
“deploráveis” da frase kamikaze de Hillary Clinton. Trump
falou para esse vasto número de eleitores e genuinamente preocupou-se com eles.
As guerras comerciais, a recalibração do comércio e o efetivo nacionalismo
do Make America great again – o nacionalismo compensa a
ausência de ideologia – entroncam diretamente nessa preocupação. As questões
marginais (casas de banho transgénero, por exemplo) merecem-lhe zero de
atenção.
E há a linguagem, é claro.
Victor Davis Hanson diz ótimas coisas acerca da retórica de Trump. Um ponto
central é o seu carácter reativo. Ao contrário de George W. Bush, que
sistematicamente se recusava a responder aos inúmeros insultos que lhe dirigiam
(lembram-se?), Trump responde imediatamente. A agressividade do que diz é, por
regra, dirigida contra indivíduos que previamente o agrediram, a sua função é
retaliatória. Dir-se-á — Hanson coloca obviamente a questão — que a dignidade
presidencial é assim posta em questão. Mas, responde Hanson, o uso e abuso dos
eufemismos pode ser mais obsceno do que a grosseira obscenidade, além de que,
real ou imaginária, a autenticidade é mais apelativa do que a hipocrisia.
A provocação e uma forma de
desarmar o adversário. Por exemplo, anunciar que vai construir um “belo
muro”, a beautiful wall, ou escrever, acerca das contínuas
mudanças no seu círculo, “ainda tenho algumas pessoas que quero mudar (sempre
em busca da perfeição)”, ou ainda, a propósito de si mesmo, que se qualifica
“não como esperto, mas como um génio … e, além disso, um génio muito estável”,
tudo isso põe o adversário a hesitar se está a falar a sério ou não, quando não
a delirar pura e simplesmente, quando se procura interpretar cabalisticamente
óbvios lapsos em tweets (como quando, querendo escrever coverage,
Trump escreveu covfefe). Já agora, por pura curiosidade, porque é
que ninguém ridicularizou Obama por ele ter dito que o Havaí, onde nasceu, se
encontrava na Ásia e que os austríacos falam uma língua chamada “austríaco”?
Pessoalmente, eu não teria ridicularizado, essas coisas não têm importância
alguma, mas também não creio que os lapsos de Trump tenham grande significado.
E o adversário? O adversário,
o Partido Democrático, começou a evoluir, já desde o segundo mandato de Obama,
em direção a um neo-socialismo e a uma fixação em políticas identitárias e num
ambientalismo radical que beneficiam Trump. Como só o pode beneficiar o
palpável desejo de morte exibido, entre outros, por atores de Hollywood, cujas
opiniões políticas obviamente Trump, com grande sageza, não leva a sério.
Restam o “estado profundo”, o deep state, e os media.
O deep state, a burocracia de Washington, que proclama abertamente
o seu estatuto de “resistência” a Trump, pode, é claro, fazer estragos, e faz
tudo para os fazer (os livros de Wolff e Woodward fazem eco à “resistência”).
Os media, em contrapartida, tornaram-se a tal ponto dependentes de
Trump (e a CNN está longe de ser caso único, como se sabe) que, dada a sua
obsessão propriamente neurótica com ele, produzem, como efeito perverso, um
movimento favorável a Trump.
Hanson vê em Trump um
personagem finalmente trágico, destinado a ser descartado quando tiver levado a
cabo um certo número de mudanças necessárias à sociedade americana. Como em
relação a muitas coisas que Hanson diz no livro, ignoro se será verdadeiramente
assim. Mas, uma vez não são vezes, permito-me referir um artigo que aqui
publiquei não muito depois de Trump ser eleito e que motivou mais ataques, quer
em conversa direta, quer por e-mail, do que qualquer coisa que eu tenha
escrito. Dizia eu que mais depressa Trump faria algo pelo seu país, e até
talvez pelo mundo, do que António Costa por Portugal. Não vejo razão alguma
para mudar de opinião.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador, 9-1-2020
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