Péricles Capanema
Tem uma pedra no meio
do caminho. Drummond — que aliás qualificou o verso famoso de “texto
insignificante, um jogo monótono” — na verdade escreveu “tinha
uma pedra no meio do caminho”. Podia ser que já não mais lá estivesse. Eu,
por meu lado, não estou tratando do passado, refiro-me a presente candente,
agora tem uma pedra grande no meio do caminho. Trata-se de tirá-la da frente.
Vamos aos fatos. O Dr. Salim
Mattar, secretário-especial de Desestatização e Desinvestimento, em 14 de
janeiro afirmou, ao longo de 2020 o governo pretende arrecadar com
privatizações, vendendo uns 300 ativos, em torno de R$150 bilhões. Aplausos, o
caminho para a prosperidade passa pela desestatização; de outro modo, pela
privatização.
Informou a mais o dirigente, a
Caixa, o Banco do Brasil e a Petrobrás não serão tocados. Os Correios ficaram
para fins de 2021. Anunciou ainda, a maior parte do dinheiro arrecadado virá de
desinvestimento (vendas) no sistema Eletrobrás. Em suma, enorme programa de
privatização em curso; para torná-lo mais ágil serão encaminhados projetos de
lei à Câmara dos Deputados, asseverou o Dr. Salim.
Repito o que escrevi, para
mim, em princípio, quanto mais ampla a privatização, melhor. O particular tem
mais eficácia que o burocrata quando o assunto é contratar, comprar, vender e
produzir. No fim, com a economia na mão de particulares e não do Estado,
teremos produtividade maior; enfim, mais emprego e renda, o que favorece o bem
comum. E que o Estado execute bem o que lhe é próprio, regulações, defesa,
segurança, proteção da moeda, atenção especial aos mais carentes, alguma coisa
mais, tem valioso e insubstituível papel. É a aplicação do princípio da
subsidiariedade nas relações entre a sociedade e o Estado, entre o particular e
o estatal. Paro, e até peço desculpas, estou me sentido um pouco o conselheiro
Acácio.
Agora, com licença do Eça, dou
as costas ao conselheiro, e trato de assuntos que não são (ou não parecem)
óbvios, ênfase em matéria constitucional.
Ao longo de 2020, aposta
minha, o leitor escutará até o fastio as seguintes expressões: empresários
chineses, empresas chinesas, investimentos chineses, investidores chineses. Não
acredite. É mentira deslavada. Melhor, fraude escandalosa para esconder a
realidade (conhecida, aliás, do Brasil inteiro, mas misteriosamente
silenciada). Vou explicar.
Dizia Talleyrand, “boutade” dele,
uma a mais, a palavra nos foi dada para dissimular o pensamento (há variadas
versões do que ele teria de fato afirmado, todas em torno da ideia de que a
palavra mais serviu para disfarçar do que para exprimi-lo). É o nosso caso, a
dissimulação. Mais no ponto, dissimular para ocultar a verdade inteira.
Volto ao que dizia e explico.
À vera, as empresas chinesas que investem no Brasil são na maioria esmagadora
dos casos, para ser prudente, estatais chinesas — dirigidas dos pés à cabeça,
por dentro e por fora — pelo governo chinês, o qual, por sua vez, não nos
esqueçamos temos lá governo de partido único, é dirigido pelo Partido Comunista
Chinês (PCC). Os empresários chineses que transitam no Brasil (conto da
carochinha) são na verdade burocratas, membros bem vistos e bem vestidos do
PCC, com cargos de direção nas estatais. Os tais investidores chineses que
aplicam no Brasil, outro recurso ardiloso, na verdade não existem; é dinheiro
posto aqui pelo governo chinês, dono das estatais.
Então, a bem da transparência,
fica aqui a errata. Quando você ler empresas chinesas, leia empresas estatais
chinesas. Quando ler, empresários chineses, leia burocratas chineses. Quando
ler investidores chineses, leia aplicações do governo comunista chinês via
estatais. Quando ler investimentos chineses, leia aplicações do governo chinês,
dirigido pelo PCC. Não vai errar em, por baixo, 99,9% dos casos.
O que estou bradando em cima
dos tetos — proclamai-o do alto dos telhados, obrigação evangélica (Mt 10, 27)
— é proibido divulgar desse jeito (mas todo mundo sabe que é assim). Todo mundo
vai continuar a falar de empresários chineses, de investidores chineses, de
capitais chineses, de empresas chinesas. Você, minha dica, aplique a errata,
pois na prática está proibido mudar tal linguagem. De onde vem a proibição, que
apunhala a realidade? Não sei. Mais, pedaço grande do programa de privatização
brasileiro corre o risco de cair nas mãos de estatais chinesas (parte já caiu).
Um exemplo entre dezenas, a imprensa nos últimos dias noticiou que a SABESP, 28
milhões de clientes, onde o governo tem 50,3% do capital votante, poderá ser
vendida. A quem? Repito o que li: a empresários chineses, a empresas chinesas,
a grupos chineses. Dissimulação. Qual a empresa interessada num negócio que
pode chegar a R$40 bilhões ou mais? Só um nome, China Railway
Construction Corporation, estatal chinesa. Privatização à brasileira.
Não sou constitucionalista e,
por isso, solicito auxílio deles. Mas me surpreenderia se não estivéssemos
diante da maior agressão à Constituição da história brasileira — monstruosa,
aberrante, silenciada e silenciosa.
Adiante, escrevendo preto
sobre o branco. Comanda o artigo 173 da Constituição:
“Ressalvados os casos
previstos nesta Constituição, a exploração direta da atividade econômica pelo
Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional
ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.
A exploração direta da
atividade econômica pelo Estado se dá por meio de empresas públicas e empresas
de economia mista (estatais). O Estado brasileiro está proibido de agir
diretamente na esfera econômica salvo nos dois casos acima. Logo, seria
aberrantemente ilegal que o Banco do Brasil, a Caixa, a Petrobrás, entre outros
agentes econômicos, via de regra (sempre se pode pensar em pequenas exceções),
participassem do processo de privatização. Seriam atos inconstitucionais,
nulos.
Se ao Estado brasileiro é
vedado participar do processo de privatização no Brasil, a fortiori os
Estados estrangeiros estão impedidos de fazê-lo por meio de suas estatais. É
absurdo, de fato, entre nós, muitas vezes, para privatizar, a propriedade sai
das mãos do Estado brasileiro e vai para as mãos de Estado estrangeiro. Na
prática, contudo, estamos tendo a presença gigantesca de estatais de outros
países no processo de privatização do Brasil. E não só de estatais chinesas.
Tais atos não foram nulos por inconstitucionais?
Quando você ler fundo soberano
de tal país, entenda estatal de tal país, outra expressão para a errata. Vários
fundos soberanos (estatais) estão ativos no Brasil, tentando aproveitar as
oportunidades do processo de privatização. Um exemplo, poucos dias arás, foi
feita a concessão (uma forma de entrega à iniciativa privada) do trecho
Piracicaba-Panorama. O consórcio vencedor, Consórcio Infraestrutura Brasil, é
formado pelo fundo Pátria e pelo fundo soberano GIC (fundo soberano de
Singapura). Foi a maior concessão até hoje feita. O GIC é uma estatal de
Singapura. Vedado ao Estado brasileiro, mas permitido a Singapura, um Estado
soberano? Pode?
Aqui está, tudo o indica, o
argumento falacioso por trás dos investimentos de governos estrangeiros no
Brasil: todas essas aplicações de capitais estão sendo abrigadas, por desídia e
velhacaria (é impostura, e ela continua intacta) no artigo 172 da Constituição:
“A lei disciplinará, com
base no interesse nacional, os investimentos de capital estrangeiro,
incentivará os reinvestimentos”.
Capital estrangeiro, o ponto.
Mas não estamos diante apenas de capital estrangeiro, não estamos tratando
apenas de investimentos estrangeiros. É falsidade ululante parar por aí. Vamos
colar nos fatos. Estamos diante de capital estrangeiro estatal, óbvio ululante,
para uma vez mais lembrar Nelson Rodrigues. São governos os seus proprietários.
E nesse caso, vale o artigo 173: se há vedação constitucional para o Estado
brasileiro estar presente, muito menos poderá o Estado estrangeiro investir por
meio de empresas públicas, sociedades de economia mista ou fundos soberanos.
Claro como água de pote.
Se assim não fosse, o Estado
brasileiro na obediência ao artigo 172 não poderia ser proprietário por vedação
constitucional, mas, por absurdo, a Constituição estimularia que, nas mesmas
circunstâncias, Estados estrangeiros abocanhassem tais propriedades.
Não adianta chiar, estamos
diante de problema constitucional grave, nulidade de atos há anos sucedendo no
ordenamento jurídico nacional. Martelo, não estamos tratando de investimentos
estrangeiros, é falsa a afirmação, estamos falando de investimentos estatais de
Estados estrangeiros. Aqui está o problema.
O problema está aqui, mas não
está só aqui. Vai mais longe. A atividade econômica no Brasil obedece a
princípios, comanda o artigo 172, o primeiro dos quais (inciso I) é que não
pode lesar a soberania nacional. Nem real, nem potencialmente. Pergunto, os
investimentos maciços de estatais chinesas no Brasil que em nada, só por
chacota, poderiam ser “imperativos de nossa segurança nacional” não
ameaçam a segurança nacional? A presença crescente deles na infraestrutura tem
“relevante interesse coletivo”? Ligarmos nossa economia, que passará a ter um de
seus pontos nevrálgicos em Pequim, na sede do PCC, tão íntima e fortemente a um
poder mundial imperialista e ditatorial em nada arranha a soberania? Poder que
hoje, visto com simpatia pela esquerda interna entreguista, apoia ditaduras
como Irã, Coreia do Norte, Venezuela, Cuba. É nosso futuro, sem dúvida de
retrocesso e atraso, adversário dos direitos humanos?
Um último ponto, a
Constituição determina, artigo 172, a lei disciplinará, com base no interesse
nacional, os investimentos de capital estrangeiro. Fala em capitais privados, é
claro; refere-se também a capitais públicos. É do interesse nacional termos
gigantescas presenças na economia de Estados estrangeiros, em especial da China
comunista?
Paro por aqui e faço convites
cordiais. Os constitucionalistas precisam se pronunciar, também é
imprescindível que falem os setores que por missão institucional ou presença na
vida pública estão especialmente ligados à preservação e defesa da
independência nacional, assim como de nossos interesses estratégicos. Tem uma
pedra no meio do caminho. Uma, não; várias, grandes e cortantes.
Título e Texto: Péricles
Capanema, ABIM,
22-2-2020
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