terça-feira, 28 de janeiro de 2020

A vertigem da democracia

Fábio Gonçalves

Em sete takes, o escritor Fábio Gonçalves desconstrói a narrativa de “Democracia em Vertigem”, desmentindo as mentiras explícitas e revelando as verdades escondidas no documentário de Petra Costa

Take 1: A valsa das elites


Quando a Dilma ganhou a eleição de 2014, eu estava num baile de dança de salão. Enquanto eu rodopiava a pista embalado por sambas e boleros, entrevia angustiado pela TV aquela apuração apertada, a petista de pouco em pouco superando o tucano, a aproximação de uma vitória inesperada da inábil candidata, uma candidata impopular, vaiada pelo Mineirão lotado na Copa do Mundo, e que àquela altura, no meio daquele pandemônio social, já se tornara motivo de troça e matriz inesgotável de memes.

Ali, eu, pobre da Silva, no que me apercebia da iminente vitória da petista, ficava temeroso pelo futuro do país. 

Havia pouco tempo eu tomara alguma ciência do nosso cenário político-cultural. Sou um dos tantos jovens da minha geração que se interessou por política a partir das Jornadas Junho de 2013. Depois que qual um gado amestrado eu fui gritar contra os 20 centavos na Faria Lima, o espírito da curiosidade me possuiu e, para compreender melhor as forças que estavam em disputa, como um esganado passei meses a fio lendo livros, fuçando na internet, travando longas conversas com professores e amigos. Queria saber quem eram os militantes de bandeira vermelha, quem eram os incipientes liberais e conservadores de verde e amarelo, quem, enfim, estava certo no meio daquele vuco-vuco, no quebra-quebra.

Com efeito, no dia das eleições, a primeira em que votei com consciência, eu já sabia do Foro de São Paulo, do Mensalão, do caso Celso Daniel, da morte estranha de Eduardo Campos. Sabia, também, em linhas gerais, o que era o comunismo, quem era Antonio Gramsci, o que queriam os revolucionários do PT e companhia.

Naquela noite, portanto, depois do anúncio fatídico, o baile terminou para mim com um tom melancólico de tango argentino. Voltei para casa, numa favela de Diadema, pesaroso, soturno. 
Ao mesmo tempo, não tão longe dali, na avenida Paulista, a militante petista Petra Costa, inebriada de alegria, girava que girava como se no palco do Bolshoi ou na Corte de Versalhes, em comemoração à conquista de Lula e da ex-guerrilheira do VAR-Palmares.

Eu na fossa; a Petra rindo, bailando.

***

Fiz esse prólogo para falar sobre vertigem. A vertigem é uma espécie de tonteira, um siricutico que nos embaça a vista, que nos perturba a visão. Quem quer que sofra de vertigem, de uma hora para outra pode topar com a realidade distorcida, embaralhada, como quem tivesse sido lançado num quadro do Munch. 

Isso do ponto de vista fisiológico, clínico. Mas, pode-se dizer que existe também uma vertigem intelectual.

As ideologias, no sentido que Robert Musil dava ao termo, são como que segundas realidades, mundos paralelos em que o doutrinado passa a viver uma vez que aceita as premissas distorcidas do ideólogo — derivando daí suas decisões, preferências, seus julgamentos de ordem moral, suas escolhas políticas. 

Um exemplo prático: 
Hitler, em 1938, estava ameaçando matar toda a raça de judeus e invadir com seus panzers metade da Europa. A realidade, com efeito, gritava: 

“Alguém pare esse maluco antes que seja tarde demais!”. 

Entretanto, a ideologia liberal-burguesa, a que toma as constituições, códigos civis e os tratados internacionais como a culminação da inteligência humana e meios suficientes para resolver qualquer pendenga — de pensões alimentícias a guerras internacionais —, dizia, no tom ponderado de um nobre vitoriano tomando chá com o dedinho esticado: 

“Levem um papel para o Sr. Hitler assinar, fazendo com que ele se comprometa a ficar só com os Sudetos. Se ele assinar, pronto, o mundo estará a salvo”.

Hitler assinou, mandou o premiê inglês, o Chamberlain, passear, e assim que o político bigodudo virou as costas e foi acenar seu papelzinho para a mídia, o facínora alemão tomou a Hungria, a Polônia, começou a guerra e matou meio mundo. 

Chamberlain e os demais pacifistas estavam numa segunda realidade, estavam numa crise aguda de vertigem intelectual. E é precisamente este o diagnóstico de Petra Costa.

***

O primeiro sinal que denota a vertigem de Petra, é o fato de não perceber que ela e sua mãe engajada, tanto quanto os parentes mais ligados à Andrade Gutierrez, empreiteira do seu avô que esteve metida nas maracutaias do PT, fazem parte da elite. 

Petra, durante todo o documentário, faz um esforço monstruoso para colocar a si própria e a sua genitora como as amigas dos pobres, o lado proletário da dialética histórica, enquanto os magnatas da família, a turma que, segundo ela, acabou votando no Bolsonaro, são a elite, os opressores, a classe a ser batida pela revolução.

Nada mais falso. O PT é desde a sua formação um partido das elites intelectuais, da mesma elite que a mãe e o pai da Petra advieram. Acontece que no meio do caminho essa elite intelectual precisou se coligar efetivamente com a elite econômica — que sempre fingiu combater — com vistas a consolidar seu projeto político. O encontro das heroínas feministas e sócio-conscientes da Andrade Gutierrez com os velhos engravatados que comandam a empreiteira da família é bastante significativo. Nesse processo de ascensão e queda do PT, os donos do discurso e das artes foram beijar as mãos dos donos do dinheiro para se alçarem todos juntos ao posto de Donos do Poder — para usar o termo do patrono petista Raimundo Faoro. 
Título e Texto: Fábio Gonçalves, Brasil Sem Medo, 28-1-2020, 8h

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