Gabriel Mithá Ribeiro
Quanto mais a sociedade expulsa de si mesma
a pobreza e a enclausura no Estado, tanto mais aquela se torna endêmica. Vale
para o interior das sociedades e vale para as relações entre Estados.
A União Europeia dissolve-se
numa fragmentação mental em que uns, os europeus do sul, alimentam a
predisposição de acusar os outros de quebras de solidariedade. Esses outros, os
europeus do norte, furtam-se a manter o dedo na ferida da fuga à
autorresponsabilidade pelos que os recriminam. Sobram os europeus de leste cuja
neutralidade na disputa é mais lucrativa do que virtuosa.
Foto: Roland Auzet |
A Comunidade Econômica
Europeia, nascida do Tratado de Roma (1957), renovada em União Europeia pelo
Tratado de Maastricht (1993) nunca se desviou da ambição originária de
conciliar o inconciliável, autorresponsabilidade e solidariedade (corrompida
em vitimização). Testada por mais de sete décadas, essa ambiguidade
não fez da Europa uma comunidade moral, o momento a partir do qual
existe um corpo moral comum capaz de transformar as inevitáveis discórdias
internas em fontes de coesão e prosperidade que permitem enfrentar as mais
variadas ameaças sem angústias sobre a sua razão de ser coletiva.
Tal maturidade existencial
implica transitar do primarismo utópico da integração dos povos e Estados
europeus pelo reequilíbrio de rendimentos econômicos, independentemente de quem
os produziu, para a observância do princípio da realidade. Este impõe a
predisposição consciente também para a renúncia e o sacrifício a todos sem
exceções, uma vez que a realidade nunca desfilia as vantagens dos riscos. E são
as dificuldades que funcionam como momento da verdade de
qualquer ordem moral, individual ou coletiva. Se alguns povos europeus
ultrapassam com eficácia as provações sucessivas, a União Europeia enquanto tal
não o tem conseguido. Acabará por ser a força da realidade, como sempre, a
repor a autoridade moral da prosperidade, o que remete para o
caixote do lixo da história as crenças marxistas.
Em teoria, não seria difícil
revitalizar a integração europeia a partir de pilares sólidos, aqueles que
resistem mesmo à crueldade suprema da guerra. A matriz judaico-cristã e a
matriz filosófica, ambas milenares e transversais à história do continente,
permitem ultrapassar a ambiguidade moral vigente e integrar, de modo permanente
e bem-sucedido, todos os povos europeus pela partilha de um mesmo princípio
existencial.
Na prática, a milenar herança
civilizacional da Europa – apesar de única na sua densidade, riqueza,
complexidade e dignidade – passou do desprezo à hostilidade ao ritmo da
renovação das gerações nas últimas décadas. As responsabilidades vão por
inteiro para as esquerdas políticas, culturais ou identitárias filiadas a uma
gênese moral e intelectual exógena ao Ocidente, num certo sentido extra
europeia, sediada na antiga URSS (1917/1922-1991).
A realidade soviética
limitou-se a exportar um modelo eficaz de dominação social produzido na maior
fábrica mental da história de instabilidade e fragmentação social e política,
abusos e violência do Estado e miséria econômica sustentado na exploração do ideal
de vitimização coletiva. Este tornou-se o princípio nuclear dos ideais de todas
as esquerdas que, nas relações entre os povos europeus, se converteu na
expressão dissimulada e polida de solidariedade europeia, mas que
se exige que funcione num único sentido. A corrupção do significado do fenômeno
reduziu-o ao saque permanente, com laivos de intimidação, dos periféricos sobre
os prósperos, em linguagem chã dos pobres sobre ricos.
O choque do exógeno mental, de
proveniência soviética, com a velha orientação mental
endógena, esta derivada da autorresponsabilidade da moral judaico-cristã
conjugada com a milenar tradição filosófica do ocidente europeu, foi cavando o
fosso da inegável falta de coesão entre os europeus. É esse
fosso que escuda os desmandos governativos de socialistas, comunistas e
radicais de esquerda particularmente influentes nas sociedades europeias de um
sul por isso mesmo cada vez mais periférico, mas que ainda assim preserva o
substrato civilizacional da alma europeia ocidental capaz de
reaproximá-lo das sociedades estabilizadas do norte e das renovadas do leste
europeus.
Estando em causa um amplo
processo histórico e social de integração de povos cuja ancestralidade tem o
coração na Europa Ocidental, quanto mais a matriz mental exógena se afirma,
isto é, quanto mais à esquerda cresce tanto mais a Europa se desintegra
reinventando, a sul, o ocorrido, a leste, no tempo do domínio imperial
soviético (1945-1991). O grande dilema moral europeu resume-se, desse modo, a
tornar as opiniões públicas conscientes de que a primazia do ideal da Europa
Solidária (suportado apenas por alguns) é incompatível com a primazia
do ideal da Europa Autorresponsável (suportado por cada
indivíduo, comunidade, povo ou Estado), uma vez que um e outro conduzem a
processos de integração social e supranacional profundamente distintos.
Porque a Europa (ainda) não é
uma comunidade moral, sempre que a realidade impõe as inevitáveis
ameaças manifesta-se incapaz de responder com realismo, eficácia,
sustentabilidade.
A primeira manifestação surgiu
com a desorientação face à ameaça terrorista islâmica entrada em solo europeu
em 2004-2005 que se mantém endêmica. A partir de 2008 sobrepôs-se a crise
financeira internacional que arrastou algumas dívidas soberanas cujo maior
problema não foi a crise em si, antes algumas das sociedades atingidas terem
recusado investir em esforços suplementares próprios de minimização das
sequelas. A partir de 2015 tornaram-se óbvios os atropelos à soberania
territorial europeia pela imigração ilegal ou crise dos refugiados. Com essa
fragilidade acrescida, 2020 trouxe o vírus chinês que faz
alastrar uma pandemia que desregula sociedades e economias.
Se pessoas e povos prosperam
pela capacidade própria de enfrentarem os inescapáveis problemas a partir da
sua força moral, sem esta permitem que os problemas se multipliquem
e sobreponham sem lhes darem respostas. Essa bola de neve faz da Europa caso
único no mundo ocidental se incluirmos o Canadá, Estados Unidos da América,
Austrália ou Nova Zelândia e não-ocidentais do primeiro mundo, como o Japão e
Israel, até com outro enquadramento, como o Brasil.
Os que odeiam, cobiçam ou
simplesmente desrespeitam o Ocidente identificaram na Europa o único alvo
frágil do mundo desenvolvido. Para aí passaram a convergir agressões
recorrentes por terra, mar e ar num tempo em que o restante
Ocidente se vai saturando de dar cobertura ao lirismo multiculturalista e globalista infantil
dos europeus.
O Brexit tornou o panorama
ainda mais sombrio. As esquerdas vitimistas que subjugam as
mentes através do controlo de universidades, imprensa e instituições europeias
têm interditado ou envenenado a legitimidade dos espaços de debate, entre os
europeus, para dirimirem temas sociais sensíveis, os filiados à confrontação de
perspectivas sobre a ordem moral europeia, a mais sofisticada disputa das
sociedades livres.
Entre esses temas destaca-se a
possibilidade de se imporem pré-condições e limites à imigração extraeuropeia.
Uma vez interditado, restou redirecionar a emergente panela de pressão social
para um referendo sobre a permanência ou a saída da União Europeia de um dos
Estados membros. A auscultação popular no Reino Unido, em 2016, foi muitíssimo
importante, porém o seu conteúdo acabou por ser pobre e, sobretudo, fortemente
prejudicial a uma ideia de Europa comum porque, além do desfecho, passou a
modelar outras pressões desagregadoras. O fanatismo esquerdista que cerceia a
liberdade aliado à cobardia dos que não ousam nem toleram a renovação da agenda
política, e dos respetivos protagonistas, impõem custos demasiado pesados.
As sequelas da latência de
uma guerra moral europeia, antecâmara de guerras civis e de guerras
entre Estados – felizmente a história nunca se repete –, entretanto não param
de se agravar como atestou um episódio recente, o dos norte-europeus dos Países
Baixos (Holanda) deverem ser ainda mais solidários, e sem hesitações ou
entraves, com a Espanha particularmente atingida pela pandemia do vírus
chinês e, infere-se, com a Itália ou Portugal, países do sul da
Europa, uma disputa apenas iniciada.
Considerando que uma imposição
moral válida é determinada pela universalidade e unidade do género humano,
admitindo ainda que a gravidade da atual crise torna hipoteticamente legítimo
apagar da noite para o dia décadas de opções governativas irresponsáveis, seja
no Sul da Europa seja em África, fica claro que irá persistir uma diferença de
condições de vida – na saúde, alimentação, ensino, emprego, segurança, sanidade
pública, habitação ou no bem-estar geral – muitíssimo maior entre Portugal e os
seus países africanos irmãos do que entre Portugal e os Países
Baixos. Logo, se se invoca a solidariedade financeira enquanto valor moral, aos
Países Baixos compete ajudar muitíssimo mais países como a Guiné-Bissau,
Moçambique ou Angola do que Portugal.
Não é por mero acaso que a
União Europeia é de uma natureza bem distinta. Funciona enquanto projeto
civilizacional comum potenciador da estabilidade política e social e da
prosperidade econômica dos povos europeus cujo enfoque remete para vantagens e
obrigações recíprocas – morais, materiais, financeiras –, uma conjugação de
iguais para se relacionarem entre adultos. Nessa comunidade, como noutras,
jamais se pode colocar em causa a importância da solidariedade, mas esta nunca
deve ser o núcleo-chave das relações entre povos e Estados distintos para não a
corromper em instigadora do parasitismo moral coletivo.
Os valores morais que orientam
as relações entre indivíduos e coletivos obedecem sempre a uma hierarquia
aferida em função dos contextos. Acontece que em qualquer contexto o dever
de solidariedade, mesmo quando óbvio, situa-se muitos furos abaixo
do dever de autorresponsabilidade. Esta é permanente e
generalizável no tempo e no espaço a todos os indivíduos e povos constituindo o
primeiro e principal dever moral para consigo mesmos, enquanto aquela limita a
sua validade a circunstâncias pontuais ou excecionais.
Viver da solidariedade dos
outros, ainda que por vontade exclusiva do doador, transforma-se num grave
atropelo à dignidade humana quando impede a maturidade dos beneficiários por
travar o desenvolvimento da autorresponsabilidade destes. Foi essa subversão da
moral que fez da bondade do Ocidente a causa do afundamento do
terceiro-mundo pós-colonial, o mesmo princípio que se quer impor às relações
entre a Europa do Norte e a Europa do Sul para desfazer a ambiguidade moral
dessa relação.
Como notou Olavo de Carvalho,
politizar e institucionalizar a solidariedade no Estado, e nas relações entre
Estados, apenas comprova que as sociedades não se querem responsabilizar pela
pobreza através da inserção do seu combate nos hábitos quotidianos dos
indivíduos comuns, o antídoto eficaz contra a falsa indigência e contra a
solidariedade castradora das obrigações morais dos indivíduos para consigo
mesmos.
A coberto de uma falsa
superioridade moral, as sociedades enclausuraram a pobreza na esfera do Estado,
inversão civilizacional que fragilizou a coesão das comunidades desde a célula
base, a família. Da solidariedade familiar hoje quase só restam os laços mais
estritamente nucleares, de pais para filhos, pois até os ascendentes diretos,
avôs e avós, acabam despejados em lares de idosos à custa do
seu próprio sacrifício afetivo e material no final da vida.
São justamente os maiores
instigadores dessas transformações históricas que mais cinicamente jogam as
culpas num alegado individualismo egoísta do ‘neoliberalismo’ (o
que é isso?!) que, em rigor, apenas reflete o narcisismo deles mesmos sem
paralelo no mundo pré-influência soviética.
Não existe mistério em se ter
tornado difícil sair da pobreza em contextos onde o fenômeno se tornou o maior
sustento de uma máquina administrativa e burocrática estatal crescente fruto de
vitórias eleitorais recorrentes de forças políticas defensoras do Estado
omnipresente. Quer dizer que quanto mais a sociedade expulsa de si mesma a
pobreza e enclausura-a no Estado, tanto mais aquela se torna endêmica. Vale
para o interior das sociedades e para as relações entre Estados.
A concluir, o princípio moral
primordial que indivíduos, comunidades e povos devem partilhar é o da autorresponsabilidade pelo
seu destino. É o que torna iguais os povos dos Países Baixos (Holanda),
Portugal, Guiné-Bissau, Moçambique, Angola e todos os demais. Daí que o rumo
que garante a coesão da União Europeia, e dos povos europeus, é exatamente o
mesmo que permite a coesão do mundo, um rumo orientado pela defesa
intransigente da universalidade dos valores morais, a opção que mais e melhor
garante a unidade e dignidade do gênero humano.
Acossado pela crise e dominado
por instintos socialistas de vitimização que o fazem investir com modos boçais
em sentido contrário à verdadeira fonte da miséria, o primeiro-ministro
português, António Costa [foto], reivindica ainda mais solidariedade europeia sabendo
que nunca retribuirá. Agitação cabotina do novo rosto europeu do parasita
moral, sanguessuga da maturidade moral alheia e alma gémea de tiranetes
terceiro-mundistas como os venezuelanos ou zimbabuanos, e desta feita desgraça
agravada das minorias étnico-raciais da Europa.
Foto: Getty Images |
Título e Texto: Gabriel
Mithá Ribeiro, Professor, investigador e ensaísta, doutorado em Estudos
Africanos, Observador,
16-4-2020
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