sábado, 24 de agosto de 2024

Do ódio


Baruch de Espinosa

[1] O ódio é uma inclinação a apartar de nós o que nos tenha causado algum mal. Devemos considerar agora que produzimos nossas ações de duas maneiras, a saber, com paixões ou sem elas. Com paixões, como se vê normalmente nos senhores contra os seus servos que tenham cometido uma falta, o que geralmente não ocorre sem ira; sem paixões, como se diz de Sócrates, que, se tinha de castigar um escravo para corrigi-lo, não o fazia enquanto estivesse com o ânimo perturbado contra o escravo.

[2] Como vemos que nossas obras podem ser feitas por nós com paixões ou sem elas, pensamos ser claro que as coisas que nos são ou tenham sido obstáculos, podem, se for necessário, ser repelidas sem que nos perturbemos. Que é então melhor? Fugir das coisas com aversão e ódio,

ou suportá-las pela força da razão, sem perturbação do ânimo (coisa que pensamos ser possível)? Antes de tudo, é certo que se fizermos sem paixões o que temos que fazer, daí não pode resultar nenhum mal. E como entre o bem e o mal não existe termo médio, vemos que deve ser bom agir sem paixão, dado que é mau fazê-lo com paixão.

[3] Mas vejamos se há algum mal em fugir das coisas com ódio e aversão. Com respeito ao ódio que nasce da opinião, é certo que não deve ocupar nenhum lugar em nós, pois sabemos que uma mesma coisa é uma vez boa e outra vez má para nós, com o se dá sempre no caso das plantas medicinais. No fundo, trata-se de saber se o ódio surge em nós somente pela opinião ou também pelo verdadeiro raciocínio. Porém, para examinar esse ponto, parece-nos apropriado explicar claramente o que é o ódio e distingui-lo da aversão.

[4] Afirmo que o ódio é uma perturbação da mente contra quem nos fez mal com vontade e saber. Porém a aversão é a perturbação que nasce em nós contra uma coisa por causa do desconforto ou sofrimento que, segundo entendem os ou opinamos, está na coisa por natureza. Digo por natureza porque, se não temos essa opinião, mesmo que tenhamos sofrido por sua causa algum incômodo ou sofrimento, não teremos aversão a ela, posto que ainda podemos esperar dela alguma utilidade, assim como quem tenha sido ferido com uma pedra ou uma faca, nem por isso terá aversão a elas.

[5] Depois dessa observação, consideremos brevemente os efeitos dessas duas paixões. Do ódio nasce a tristeza e, quando o ódio é grande, a ira, a qual não somente inclina, como o ódio, a fugir da coisa odiada, mas também a destruí-la se for factível. Desse ódio grande nasce igualmente a inveja. Porém, da aversão nasce alguma tristeza porque tentamos nos privar de uma coisa que, sendo existente, também deve ter sempre sua essência e perfeição.

[6] A partir do que foi dito, pode-se entender facilmente que, se nos servimos bem de nossa razão, não podemos ter nenhum ódio nem aversão contra algo porque, ao fazê-lo, nos privamos da perfeição que há em todas as coisas. E, portanto, também vemos pela razão que jamais podemos odiar alguém, porque tudo que existe na Natureza, se disso queremos algo, devemos sempre transformá-lo em algo melhor ou para nós, ou para a própria coisa.

[7] E visto que um homem perfeito é o que de melhor nós conhecemos ao ter presente ou diante dos olhos, então o melhor para nós, e para cada homem em particular, é sempre nos esforçarmos para conduzir os homens até esse estado perfeito; pois somente então podemos ter deles, e eles de nós, o maior dos frutos. O meio para isso é considerá-los sempre como a nossa boa consciência nos ensina e exorta, pois ela não nos impulsiona jamais para nossa ruína, mas sempre para nossa salvação.

[8] Concluímos afirmando que o ódio e a aversão têm tantas imperfeições quanto, ao contrário, o amor tem perfeições, pois o amor produz sempre melhora, fortalecimento e crescimento, o que é a perfeição; enquanto o ódio, ao contrário, sempre visa a devastação, enfraquecimento e aniquilação, e isso é a imperfeição mesma.

Título e Texto: Baruch de Espinosa, in “BREVE TRATADO de Deus, do homem e do seu bem-estar”, Autêntica Editora, 2012, páginas 104 e 105; Digitação: JP, 24-8-2024 

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