Adaptado do conto original de Hans Christian Andersen
Aparecido Raimundo de Souza
Na verdade, a esfuziante e psicodélica Dercy não se sentia medonha. Ficava (para quem se deu ao trabalho de ler a sua biografia, pelas mãos de Fernando Morais) pê da vida, subia nas tamancas, trepava nos postes, pulava em cima dos carros e até em lambretas e bicicletas, quando um imbecil qualquer a alcunhava de “mostrinha de Santa Maria Madalena.” Pois bem! Meu Patinho Feio poderia até ser cabuloso, porém, agora possuía um nome. Hans Christian que me perdoe. Aliás, feio, por feio, Hans também deixou muito a desejar em matéria de apelido. Deveria ter brigado com a mãe e pedido para achar um patronímico mais bonito ou mais condizente com o seu estado de criador de historinhas infantis. Creio que, por ter sido batizado Hans, de raiva mandou brasa no seu Patinho, cognominando o desventurado de feio. O patinho, a bem da verdade, tinha suas qualidades. Nascera um patinho dotado de uma empatia impressionante e uma capacidade quase sobrenatural de se perder em labirintos de pensadores introspectivos. Ao contrário dos seus doze irmãos (cinco machos, incluindo ele, logicamente, e sete fêmeas), que desfilavam com graça e autoconfiança, o nosso Noa, por puro azar, carregava em sua concepção um probleminha puramente estético.
Quando os onze ovinhos
foram quebrados, apenas um restou sem sair da casca. Apesar disso, a sua mãe,
dona Pata, não o abandonou e seguiu chocando. Dias depois, o derradeiro nasceu
para a vida. Num primeiro momento, ela o achou estranho, mas, como aos demais
da ninhada, amou-o intensamente, sem fazer distinção por causa daquela
diferença gritante. Com o passar do tempo, enquanto os outros se faziam sem
manchas aos olhos dos aparentados lindos e intocáveis patinhos de penas
lustrosas, vozes melodiosas e cativantes, ele, o último dos moicanos, se
converteu num tremendo Patinho Feio – perdão –, o Noa. O coitadinho parecia uma
obra de arte inacabada. Uma aberração abstrata. Uma pessoinha de pernas
compridas e plumagens desgrenhadas. No mundo dos patos, como no mundo real dos
humanos, a aparência conta. No universo podre em que vivemos, nos dias de hoje,
a coisa toda quadriplica. A cara feia ou a tez bonita conta ainda mais,
especialmente nas redes sociais e nas plataformas de streaming. O Patinho Feio,
com seu aspecto pouco convencional e, à medida que crescia, aumentava seu gosto
peculiar por filosofias existenciais.
O patinho Noa não estava
exatamente em alta. É certo que tentava se encaixar, mas parecia que suas
investidas de viralizar se faziam por água, ou, ao contrário, descambavam para
as mais dignas de uma série de falências épicas do que de um sucesso retumbante.
Seu grande e almejado desejo: ser aceito como seus irmãos e irmãs, ser um pato
popular, tipo “cheguei, tô chegado, sou o rei do pedaço.” Nem as palavras de
sua mãe amenizavam seu sofrimento interior:
— Seja bem-vindo, meu
lindo filhote... mamãe te ama!
Preocupado com a vida que
seguia inexorável, ele começou a assistir tutoriais de “Como Se Tornar Um Pato
Nota Mil” e se lançou em aventuras das mais alienígenas e estrambóticas, que,
segundo a mídia imbecilizada, fariam qualquer pato, por mais pato que fosse, se
transformar num pato galã, nos moldes de Tom Cruise, Brad Pitt, Keanu Reeves,
Richard Gere e Johnny Depp. Se embrenhou, paralelamente, em tentar se reavaliar
nas terapias. Em vão. Em passo seguinte, pousou para fotos elegantes em poses
que só um pato com “P” maiúsculo teria coragem, e aí também deu embaraço. Em
paralelo, se dedicou a ler muitos livros infantis.
Se apaixonou perdidamente
pelas literaturas de Perrault, Lewis Carroll, Charles Dickens e os Irmãos
Grimm, sem deixar de fora Ariano Suassuna, Monteiro Lobato, Jorge Amado, Mirna
Brasil Portela, Lulu Lima e Maurício de Souza. Não contente, se embrenhou em
obras de autoajuda, sempre na esperança de que esses livros pudessem dar outro
rumo ou pelo menos para se sentir menos desventuroso. Afora isso, experimentou
cada tendência de filtros patológicos para “esticadores de pescoço” e vídeos de
danças em que ele mal conseguia coordenar as pernas com as músicas. Ainda
assim, o patinho Noa continuava ignorado nas timelines dos outros co-irmãos.
Queria chegar, pelo menos, aos chulés do Pato Donald, do Peninha, do Huguinho,
do Patolino, etc. Seus posts, suas contas no Facebook, e-mails, Instagram e
outras porcarias recebiam likes de poucos e, entre eles, vinham, de roldão, os
recados marotos de seu tio Pato Fu e de uma gloriosa garça que acreditava
piamente no potencial de qualquer vivente que tentasse algo novo. Certo dia,
anos depois, uma reviravolta:
— Estou cansado de ver
minha mãe sendo humilhada por toda a bicharada. Sou por demais feio... vou cair
no mundo!
O Patinho Feio –, perdão
–, o lindo e simpaticíssimo Noa, tardão da noite, fez uma trouxa e escafedeu,
sem deixar rastros. Caminhou dias e noites, enfrentou chuvas fortes e dias
quentes de rachar o bico. Até que, depois de ter andado quilômetros e quilômetros,
sem rumo certo, se deparou, numa tarde ensolarada, com um enorme grupo de
cisnes, aqueles que ainda enfeitam o Parque do Ibirapuera em São Paulo e o de
Porto Belo, em Dublin, nas noites cálidas irlandesas. Os cisnes de Noa não
estavam ao seu dispor nesses dois lugares distintos. Apenas brilhavam ao seu
entorno, por serem conhecidos, adorados e amados, não somente pelos seus portes
majestosos, como também pelos cérebros brilhantes (ou, pelo menos, essa
história biruta que fazia sucesso entre os espécimes que já nasciam guindados
aos píncaros do sucesso). Noa parou para um merecido descanso e esperou.
Enquanto se refazia das andanças, ficou observando, filmando, assistindo,
perscrutando, e descobriu, a certa altura, que o que realmente importava não estava
disponível nos filtros ou nos truques mágicos para ganhar seguidores.
Nem aparecer na chata e
indigesta Ana Maria Braga, ou no Marcos Mion ou ainda no narigudo Luciano Huck.
Esse cara sim, tirando a inoxidável Angélica, sem dúvida alguma, um feio bem
feio, horroroso, a ponto de Noa levar a sério a história daquele “pau malcriado
que matando dois coelhos com uma só cajadada caía nos costados de Chico como
também poderia ser usado nos escutadores de novelas de Francisco.” Com isso
tudo fervilhando em sua mente, Noa começou a apostar sobre o que realmente
gostava: suas reflexões sobre a vida, as falhas e acertos em suas aventuras
filosóficas e até nas infindáveis tentativas desastrosas de imitar as danças
tresloucadas do momento. De repente, do nada, acordou para a vida. Não se
preocuparia mais em ser o pato mais bonito ou o mais popular. Noa simplesmente
se reprogramou para ser ele mesmo, sem filtros e sem pretensões de grandeza.
Para sua surpresa, foi isso o que realmente fez toda a diferença. A ponto de,
da noite para o dia, chamar a atenção da mais encantadora e inimitável donzela,
a cisne Bárbara, que incansavelmente vivia atrás de algo genuíno. Ao vê-la de
um lado para o outro, Noa pensou com sua tristeza:
— Como gostaria de ser
assim, lindo!
Por seu turno, em
paralelo, como quem não queria nada e sem dar muito na pinta, Bárbara, arisca e
de visão ampla transbordando para além dos horizontes, começou a reparar em
Noa. A olhá-lo mais profundamente, seu coração exclamou: “Que belo ragazzo.”
Num domingo, perdeu a pose e convidou o mancebo:
— Ei, você, venha nadar
comigo e com as minhas amigas.
Suas palavras ressoaram
em outros cisnes e até alguns patos e marrecos começaram a acompanhar a sua
jornada com a nova criatura agora irmanada à grande família Anatidae. Na mosca.
Em questão de dois meses, o patinho Noa, ao se ver refletido nas águas límpidas
daquele lago espetaculoso, se achou formoso e igual. Por conta desse milagre,
se tornou um símbolo de autenticidade no mundo não só dos patos como também de
todas as aves aquáticas que por lá viviam. Dessa forma, o antigo patinho feio,
o encantador e único Noa, descobriu que o verdadeiro segredo da vida plena não
se funde na aparência perfeita aos olhos de quem quer que seja, notadamente de
seus irmãos e irmãs. Sobretudo, em ser ele mesmo –, ou dito de forma mais clara
–, sem carecer de retoques, operações plásticas, botox, produtos caros,
barbeiros, ou academias para perder ou ganhar peso. Unicamente se tornar
autêntico. Ele não virou um cisne ou um pato popular. Desses de abraçar uns e
outros, como fazem os políticos cafajestes, visando angariar votos.
Ao acolher quem realmente
se coadunava à sua vidinha de pato, harmonizou um lugar onde se encaixava,
misturado a um grupo que o apreciava não por sua aparência, mas pelo valor da
sua essência. Um mês após ter sido visto pela cisne Bárbara, ele a pediu em
namoro. Foi aceito. Com direito a festa de arromba entre patos, gansos,
galinhas, cachorros e até elefantes e marrecos. Meses depois, uma nova festa
bailou. Noa e Bárbara se uniram em matrimônio. Roberto Carlos apareceu como
convidado especial e fez um show caprichado, terminando com a música “Eu
Ofereço Flores.” Para sedimentar a alegria de Noa e Bárbara, pelas redes
sociais, a mãe do antigo Patinho Feio, a Dercy, ficou sabendo do casamento e da
localidade onde ele morava. Não pensou duas vezes. Deu linha à pipa. Na
chegada, a família em peso foi recebida com honras, entremeadas num lindo
evento, onde se fizeram presentes os antigos bichos da fazenda que o
maltratavam, incluindo o cachorro Totó, que desdenhava sempre que o via
passeando pela quinta. Entre lágrimas de saudade e o mais alvissareiro: o
reencontro do filho desaparecido e sua mãe. Assim termina a história do Patinho
Feio, ou melhor, do Patinho Noa. Dezoito meses depois, o casal Noa e Bárbara
teve uma ninhada de lindos bebês patinhos. Todos foram felizes e viveram em
harmonia – para sempre.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Barretos e Campinas, interior de São Paulo, 27-8-2024
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