terça-feira, 27 de agosto de 2024

[Aparecido rasga o verbo] O Patinho Feio que não era feio

Adaptado do conto original de Hans Christian Andersen 

Aparecido Raimundo de Souza 

TODAS AS HISTÓRIAS da minha infância começavam assim: “Era uma vez...” Obviamente, a história do meu “Patinho Feio” não poderia ser de outra maneira. Existem algumas coisas que Hans Christian Andersen deixou à deriva. Por exemplo? O nome do Patinho Feio. Qual deveria ser o nome do personagem principal? Todo mundo já sabe: Patinho Feio. Mas Patinho Feio não é um nome. É uma maneira miserável, esdrúxula e imperdoável de apelidar alguém, ou de chamar uma criaturinha maravilhosa de feio. Tal fato não acontece aqui na minha adaptação. O meu Patinho pode até não ser agradável aos olhos. Todavia, tem nome. Ele se chamará, a partir de agora, Noa. A mãe dele é uma patinha graciosa. Também lhe dei um nome bonito: Dercy. Pelo amor de Jesus Cristo, nada a ver com a Dercy Gonçalves. Essa jovem atriz nunca foi feia. O que tinha divorciada da estética ou dos padrões de beleza era substituído pela sua performance e pela sua transformação nos palcos. Sem falar na sua originalidade. Tanto nos programas de televisão, como nas apresentações nas rádios e, igualmente, nos cinemas e nos shows que participava Brasil e mundo afora.

Na verdade, a esfuziante e psicodélica Dercy não se sentia medonha. Ficava (para quem se deu ao trabalho de ler a sua biografia, pelas mãos de Fernando Morais) pê da vida, subia nas tamancas, trepava nos postes, pulava em cima dos carros e até em lambretas e bicicletas, quando um imbecil qualquer a alcunhava de “mostrinha de Santa Maria Madalena.” Pois bem! Meu Patinho Feio poderia até ser cabuloso, porém, agora possuía um nome. Hans Christian que me perdoe. Aliás, feio, por feio, Hans também deixou muito a desejar em matéria de apelido. Deveria ter brigado com a mãe e pedido para achar um patronímico mais bonito ou mais condizente com o seu estado de criador de historinhas infantis. Creio que, por ter sido batizado Hans, de raiva mandou brasa no seu Patinho, cognominando o desventurado de feio. O patinho, a bem da verdade, tinha suas qualidades. Nascera um patinho dotado de uma empatia impressionante e uma capacidade quase sobrenatural de se perder em labirintos de pensadores introspectivos. Ao contrário dos seus doze irmãos (cinco machos, incluindo ele, logicamente, e sete fêmeas), que desfilavam com graça e autoconfiança, o nosso Noa, por puro azar, carregava em sua concepção um probleminha puramente estético.

Quando os onze ovinhos foram quebrados, apenas um restou sem sair da casca. Apesar disso, a sua mãe, dona Pata, não o abandonou e seguiu chocando. Dias depois, o derradeiro nasceu para a vida. Num primeiro momento, ela o achou estranho, mas, como aos demais da ninhada, amou-o intensamente, sem fazer distinção por causa daquela diferença gritante. Com o passar do tempo, enquanto os outros se faziam sem manchas aos olhos dos aparentados lindos e intocáveis patinhos de penas lustrosas, vozes melodiosas e cativantes, ele, o último dos moicanos, se converteu num tremendo Patinho Feio – perdão –, o Noa. O coitadinho parecia uma obra de arte inacabada. Uma aberração abstrata. Uma pessoinha de pernas compridas e plumagens desgrenhadas. No mundo dos patos, como no mundo real dos humanos, a aparência conta. No universo podre em que vivemos, nos dias de hoje, a coisa toda quadriplica. A cara feia ou a tez bonita conta ainda mais, especialmente nas redes sociais e nas plataformas de streaming. O Patinho Feio, com seu aspecto pouco convencional e, à medida que crescia, aumentava seu gosto peculiar por filosofias existenciais.

O patinho Noa não estava exatamente em alta. É certo que tentava se encaixar, mas parecia que suas investidas de viralizar se faziam por água, ou, ao contrário, descambavam para as mais dignas de uma série de falências épicas do que de um sucesso retumbante. Seu grande e almejado desejo: ser aceito como seus irmãos e irmãs, ser um pato popular, tipo “cheguei, tô chegado, sou o rei do pedaço.” Nem as palavras de sua mãe amenizavam seu sofrimento interior:

— Seja bem-vindo, meu lindo filhote... mamãe te ama!

Preocupado com a vida que seguia inexorável, ele começou a assistir tutoriais de “Como Se Tornar Um Pato Nota Mil” e se lançou em aventuras das mais alienígenas e estrambóticas, que, segundo a mídia imbecilizada, fariam qualquer pato, por mais pato que fosse, se transformar num pato galã, nos moldes de Tom Cruise, Brad Pitt, Keanu Reeves, Richard Gere e Johnny Depp. Se embrenhou, paralelamente, em tentar se reavaliar nas terapias. Em vão. Em passo seguinte, pousou para fotos elegantes em poses que só um pato com “P” maiúsculo teria coragem, e aí também deu embaraço. Em paralelo, se dedicou a ler muitos livros infantis.

Se apaixonou perdidamente pelas literaturas de Perrault, Lewis Carroll, Charles Dickens e os Irmãos Grimm, sem deixar de fora Ariano Suassuna, Monteiro Lobato, Jorge Amado, Mirna Brasil Portela, Lulu Lima e Maurício de Souza. Não contente, se embrenhou em obras de autoajuda, sempre na esperança de que esses livros pudessem dar outro rumo ou pelo menos para se sentir menos desventuroso. Afora isso, experimentou cada tendência de filtros patológicos para “esticadores de pescoço” e vídeos de danças em que ele mal conseguia coordenar as pernas com as músicas. Ainda assim, o patinho Noa continuava ignorado nas timelines dos outros co-irmãos. Queria chegar, pelo menos, aos chulés do Pato Donald, do Peninha, do Huguinho, do Patolino, etc. Seus posts, suas contas no Facebook, e-mails, Instagram e outras porcarias recebiam likes de poucos e, entre eles, vinham, de roldão, os recados marotos de seu tio Pato Fu e de uma gloriosa garça que acreditava piamente no potencial de qualquer vivente que tentasse algo novo. Certo dia, anos depois, uma reviravolta:

— Estou cansado de ver minha mãe sendo humilhada por toda a bicharada. Sou por demais feio... vou cair no mundo!

O Patinho Feio –, perdão –, o lindo e simpaticíssimo Noa, tardão da noite, fez uma trouxa e escafedeu, sem deixar rastros. Caminhou dias e noites, enfrentou chuvas fortes e dias quentes de rachar o bico. Até que, depois de ter andado quilômetros e quilômetros, sem rumo certo, se deparou, numa tarde ensolarada, com um enorme grupo de cisnes, aqueles que ainda enfeitam o Parque do Ibirapuera em São Paulo e o de Porto Belo, em Dublin, nas noites cálidas irlandesas. Os cisnes de Noa não estavam ao seu dispor nesses dois lugares distintos. Apenas brilhavam ao seu entorno, por serem conhecidos, adorados e amados, não somente pelos seus portes majestosos, como também pelos cérebros brilhantes (ou, pelo menos, essa história biruta que fazia sucesso entre os espécimes que já nasciam guindados aos píncaros do sucesso). Noa parou para um merecido descanso e esperou. Enquanto se refazia das andanças, ficou observando, filmando, assistindo, perscrutando, e descobriu, a certa altura, que o que realmente importava não estava disponível nos filtros ou nos truques mágicos para ganhar seguidores.

Nem aparecer na chata e indigesta Ana Maria Braga, ou no Marcos Mion ou ainda no narigudo Luciano Huck. Esse cara sim, tirando a inoxidável Angélica, sem dúvida alguma, um feio bem feio, horroroso, a ponto de Noa levar a sério a história daquele “pau malcriado que matando dois coelhos com uma só cajadada caía nos costados de Chico como também poderia ser usado nos escutadores de novelas de Francisco.” Com isso tudo fervilhando em sua mente, Noa começou a apostar sobre o que realmente gostava: suas reflexões sobre a vida, as falhas e acertos em suas aventuras filosóficas e até nas infindáveis tentativas desastrosas de imitar as danças tresloucadas do momento. De repente, do nada, acordou para a vida. Não se preocuparia mais em ser o pato mais bonito ou o mais popular. Noa simplesmente se reprogramou para ser ele mesmo, sem filtros e sem pretensões de grandeza. Para sua surpresa, foi isso o que realmente fez toda a diferença. A ponto de, da noite para o dia, chamar a atenção da mais encantadora e inimitável donzela, a cisne Bárbara, que incansavelmente vivia atrás de algo genuíno. Ao vê-la de um lado para o outro, Noa pensou com sua tristeza:

— Como gostaria de ser assim, lindo!

Por seu turno, em paralelo, como quem não queria nada e sem dar muito na pinta, Bárbara, arisca e de visão ampla transbordando para além dos horizontes, começou a reparar em Noa. A olhá-lo mais profundamente, seu coração exclamou: “Que belo ragazzo.” Num domingo, perdeu a pose e convidou o mancebo:

— Ei, você, venha nadar comigo e com as minhas amigas.

Suas palavras ressoaram em outros cisnes e até alguns patos e marrecos começaram a acompanhar a sua jornada com a nova criatura agora irmanada à grande família Anatidae. Na mosca. Em questão de dois meses, o patinho Noa, ao se ver refletido nas águas límpidas daquele lago espetaculoso, se achou formoso e igual. Por conta desse milagre, se tornou um símbolo de autenticidade no mundo não só dos patos como também de todas as aves aquáticas que por lá viviam. Dessa forma, o antigo patinho feio, o encantador e único Noa, descobriu que o verdadeiro segredo da vida plena não se funde na aparência perfeita aos olhos de quem quer que seja, notadamente de seus irmãos e irmãs. Sobretudo, em ser ele mesmo –, ou dito de forma mais clara –, sem carecer de retoques, operações plásticas, botox, produtos caros, barbeiros, ou academias para perder ou ganhar peso. Unicamente se tornar autêntico. Ele não virou um cisne ou um pato popular. Desses de abraçar uns e outros, como fazem os políticos cafajestes, visando angariar votos.

Ao acolher quem realmente se coadunava à sua vidinha de pato, harmonizou um lugar onde se encaixava, misturado a um grupo que o apreciava não por sua aparência, mas pelo valor da sua essência. Um mês após ter sido visto pela cisne Bárbara, ele a pediu em namoro. Foi aceito. Com direito a festa de arromba entre patos, gansos, galinhas, cachorros e até elefantes e marrecos. Meses depois, uma nova festa bailou. Noa e Bárbara se uniram em matrimônio. Roberto Carlos apareceu como convidado especial e fez um show caprichado, terminando com a música “Eu Ofereço Flores.” Para sedimentar a alegria de Noa e Bárbara, pelas redes sociais, a mãe do antigo Patinho Feio, a Dercy, ficou sabendo do casamento e da localidade onde ele morava. Não pensou duas vezes. Deu linha à pipa. Na chegada, a família em peso foi recebida com honras, entremeadas num lindo evento, onde se fizeram presentes os antigos bichos da fazenda que o maltratavam, incluindo o cachorro Totó, que desdenhava sempre que o via passeando pela quinta. Entre lágrimas de saudade e o mais alvissareiro: o reencontro do filho desaparecido e sua mãe. Assim termina a história do Patinho Feio, ou melhor, do Patinho Noa. Dezoito meses depois, o casal Noa e Bárbara teve uma ninhada de lindos bebês patinhos. Todos foram felizes e viveram em harmonia – para sempre.

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Barretos e Campinas, interior de São Paulo, 27-8-2024 

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