sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O Estado quer salvar a imprensa? Seja então mais transparente e reforce a proteção dos jornalistas

Pedro Almeida Vieira

“Numa altura em que é vital focarmo-nos na defesa do jornalismo sério e independente como pilar estruturante da democracia, importa pensar como o Estado pode ressarcir os media dos seus erros e do viés das suas políticas públicas”. Esta é uma das frases de um artigo de opinião de Francisco Rui Cádima, investigador do ICNOVA – Instituto de Comunicação da Universidade Nova de Lisboa publicado na semana passada no jornal Público. Nem de propósito, ou muito a propósito, esta opinião surge num jornal que apresentou, no ano passado, prejuízos de 4,5 milhões de euros e o seu ‘mecenas’, o Grupo Sonae, já se cansa de encaixar resultados líquidos negativos desde 2017 da ordem dos 24 milhões de euros.

A tónica de Francisco Rui Cádima apenas faz eco de um coro cada vez mais crescente da generalidade dos grupos de media, e mais os seus defensores, em reivindicar apoios ao Estado, ao mesmo tempo que se estabeleceu um forrobodó de práticas censuráveis. No sector privado dos media, com a excepção da Medialivre, assistimos a um absurdo de gestão financeira e de recursos, com jornalistas genericamente mal pagos, mas diretores principescamente pagos, que republicam as mesmas notícias, os mesmos temas, as mesmas abordagens, numa cansativa e única perspectiva, não se destacando na mediocridade uma das outras. E no mercado, o público é soberano, e até as empresas, que de início apreciavam a promiscuidade das parcerias comerciais, olham agora com desconfiança para um ‘chão que já só dá para vinagre’. 

Sou defensor do jornalismo como um bem público, no conceito económico do termo, que, por trazer mais vantagens à sociedade do que o seu valor de mercado (concedido pelos seus clientes), merece apoio público. Mas cabe também ao Estado – e à sociedade – a capacidade de separar o trigo do joio, para que não cometa o viés de trazer vantagens às negociatas que se fazem através dos media. E, por esse motivo, sou e serei um opositor ferrenho de ‘salvar o jornalismo’ despejando dinheiro em mau jornalismo.

A crise no sector dos media está longe de se dever ‘apenas’ à não-valorização do seu papel pelos consumidores, mas sim a uma crise de credibilidade. Quem acredita estarem a ser as redes sociais a causar a morte do jornalismo, estará a enganar-se a si próprio. A proliferação rápida de (suposta) desinformação pelas redes sociais surge porque a imprensa deixou de ser um ‘porto seguro’ de credibilidade. Se antes se podia ‘emprenhar pelos ouvidos’ num café entre amigos, mas o que se se ouvia nesses ‘mentideros’ caía numa consulta dos jornais; agora, tal deixou de ser uma garantia. Atualmente, num misto de ignorância e de notícias ideologicamente enviesadas, temos necessidade de recorrer à fonte para saber se uma determinada ‘informação’ que nos chega é verdadeira ou falsa, quer seja transmitida por um post viral ou por uma ‘notícia’ da imprensa mainstream. Este é o drama; esta é a causa da crise.

E essa é a crise – e não se resolve despejando ‘dinheiro público’, sobretudo quando o ‘leitmotiv’ aparenta ser uma «boia de salvação’ de grupos de media em dificuldades, alguns dos quais, com a Trust in News e a Global Notícias à cabeça, deveriam até já ter desaparecido literalmente, por uma questão de sustentabilidade ética do mercado, de integridade do jornalismo e de abertura de espaço para novos players

Marcelo Rebelo de Sousa, no V Congresso dos Jornalistas. O evento, que foi patrocinado e ‘apoiado’ por mais de uma dúzia de entidades públicas e privadas, incluindo empresas e bancos, exigia o pagamento de entrada a jornalistas interessados apenas em cobrir o congresso, o qual teve ainda o ‘Alto Patrocínio’ da Presidência da República. Foto: D.R.

De entre as soluções de apoios do Estado sugeridas, concordo com duas: tornar gratuito, mas apenas para os pequenos órgãos de comunicação social, o acesso ao material fotográfico da Agência Lusa; e permitir que os cidadãos possam decidir, através de uma espécie de ‘voucher imprensa’, quem, de entre os diversos órgãos de comunicação social, merece receber os apoios estatais. Só assim se corrigirão erros e vieses de um bem público como é a imprensa. Se a opção for burocrática e política, com o Governo a distribuir dinheiro e prebendas pelos ‘suspeitos do costume’, a tal correção das ‘falhas de mercado’ será um embuste, apenas agravando o problema da qualidade e credibilidade da imprensa, até ao dia em que acordarmos com uma imprensa não lida, não ouvida e não vista, existindo somente como receptáculo de uma fonte de despejos de dinheiro chamado Estado.

Infelizmente, na esfera da discussão dos apoios à imprensa e do papel do Estado, não tem entrado neste debate – e não será por esquecimento – o papel do Governo (e do Parlamento) num assunto fundamental para o trabalho da imprensa: a transparência da Administração Pública e o acesso à informação dos jornalistas, que são ‘instrumentos’ essenciais para a prática do (bom) jornalismo.

Continue lendo no » Página UM 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-