domingo, 25 de agosto de 2024

[As danações de Carina] Acenos no Escuro

Carina Bratt

‘O aceno é um adeus com um sorriso de “até daqui alguns minutos.” Embora sem palavras sonoras, esse gesto resplandece com todo vigor e esperança dentro do mais profundo do nosso coração. Acreditem, todo ele, o velho e surrado aceno, como nossa alma, se abre em festa.’
Aparecido Raimundo de Souza

NO ANÍMICO mais isolado do entardecer, onde o céu grandioso parece se dissolver em um azul profundo e o horizonte se torna um borrão indistinto, o ato de alguém acenar assume uma dimensão maviosa, quase mágica. Na pequena Cachoeira de Santa Cruz [foto], distada poucos quilômetros da cidade de Viçosa, nas Minas Gerais, onde as ruas simples ainda se vestem paralelepipedadas aos costumes dos tempos de nossos familiares já falecidos, um fenômeno divino acontece. Na verdade, diria que esse incomum se entrelaça como as veias do nosso corpo humano. Sempre que tenho tempo de aparecer e ficar uns dias por lá, procuro me encontrar no ponto mais alto da pequena e bucólica cidadela. Na hora aprazada, me ponho à espera do crepúsculo, para ver a dança (não das pessoas), mas do ‘fique com Deus’ e do ‘até amanhã’ que acontece quando o dia cansado se despede.


À medida em que o sol se oculta, os moradores começam a acenar para os amigos e vizinhos, como se fossem personagens de um teatro de plateia invisível. Nesse momento, todos estão envolvidos em seus próprios atos de despedida e, ao mesmo tempo, de chegada. A rua principal (ainda sem os lampiões acesos, com suas casas pitorescas de varandas floridas, completadas com placas simples escritas nas fachadas ‘Aqui é um lar’), se transforma num enorme palco onde o ‘tchau’ se torna um gesto de conexão em meio à obscuridade que se avizinha. Os acenos no escuro não são apenas cumprimentos ou despedidas; se tornam numa forma edificante de transmitir a presença e a solidariedade no minuto em que as palavras se traduzem desnecessárias. Quando a luz do sol esplendoroso se esconde, os gestos toscos e amenos de levantar as mãos, mesmo sem a certeza de que os outros as estejam vendo claramente, carregam um significado por demais profundo.

É como se cada um, em particular, estivesse tentando alcançar o vizinho no meio da vastidão promissora da noite, usando a luz de suas próprias emoções como uma conexão-guia. Em uma dessas noites, faz anos, confesso, por pura sorte, eu me encontrava à janela da casa de uma tia (hoje falecida), ao tempo em que observava a cena habitual: um idoso, com a sua bengala, fazia um aceno para um grupo de crianças que brincava perto do coreto da praça. Elas respondiam de volta, mesmo que, de fato, só conseguissem enxergar os contornos sombrios da figura sem rosto. Numa visão geral, os gestos, apesar da escuridão, traziam (e creio, ainda trazem) uma sensação de segurança e pertencimento. Em outra esquina, a senhora da loja de antiguidades, conhecida por seus olhos penetrantes e o sorriso sereno, escancarava as mãos para um caminhante solitário que passava pela via principal, vindo desembocar defronte à igreja matriz.

Ele respondia com um levantar leve, um gesto quase imperceptível, todavia carregado de um reconhecimento tácito de que, em algum lugar, não sabia exatamente onde, ou por quem seria visto. Ele tinha convicção plena disso, ou dito de outra forma, sabia que não estava sozinho. Às vezes, ainda agora, me pergunto sobre as histórias que se escondiam naqueles mimos noturnos. Que segredos e esperanças se faziam trocados no sentimento daqueles que se encontravam no breu carinhoso, sem que o brilho da luz revelasse as suas verdadeiras faces? Talvez o ‘adeus’ ou o ‘até amanhã’ fosse uma forma de iluminar a ablepsia com respingos de um lampejo de humanidade, ou uma recordação imorredoura de que, mesmo quando não conseguimos ver claramente, a presença do outro, em sua simplicidade, seja um conforto infinitamente palpável.

Os acenos, pois, em epítome, na ausência do ‘ver claramente’, perduram até hoje. É uma espécie metafórica e engrandecedora para os momentos em que nos esforçamos para manter em ebulição as conexões, mesmo quando os caminhos a serem seguidos se fazem incertos. Mesmo assim, quando as palavras pronunciadas não se coadunam suficientes e a rutilação da luz não se propaga abundantemente. Sem dúvida alguma, os gestos de um ‘amanhã, mesma hora, aqui outra vez,’ nos dizem ao âmago mais profundo que ainda respiramos, vivos e presentes... que seguimos próximos, usque perdura e perdurará para sempre, como um fio invisível que nos unira, ad aeternum estendido, entre os fantasminhas amigos e camaradinhas da nobre, soberba, doce e calma escuridão. Vejo a coisa toda como ‘pontos-chave’ que nos mantêm aos cuidados do Eterno.

Então, minhas amigas e leitoras da ‘Grande Família Cão que Fuma,’ enquanto o crepúsculo cede lugar definitivo à noite e o vilarejo inteiro se deita e mergulha, de corpo e alma no vazio aconchegante do silêncio suave da escuridão, tudo sem tirar nem pôr, se ‘metamorfoseia.’ Nessas horas, quando euzinha, vez em quando, me faço por lá, continuo a observar esses pequenos momentos de homogeneidade, esses acenos benfazejos renascidos dos anuviados enegrecidos. Eles são, talvez, as mais puras formas de esperança da esperança humana. Iria mais longe e diria: são lembretes de que, mesmo quando a luz do dia se apaga, nossos gestos mais insignificantes podem aclarar a leveza da noite, criando uma rede particular de solidariedade, ou uma reciprocidade que simplesmente nos envolve a todos, I N D I S T I N T A M E N T E.

Título e Texto: Carina Bratt, da Freguesia do Ó, São Paulo, Capital, 25-8-2024

Anteriores: 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-