Carina Bratt
‘Às vezes, ficar de boca fechada é melhor do que engolir moscas impertinentes diante de um celular fofoqueiro ligado e atento, com todos os olhos esbugalhados e acesos em uma situação conflitante e inesperada.’
Jo Nesbo, em seu romance ‘O Morcego’, da série Harry Hole.
HELENO ENCONTROU a Ana Alice na garagem do prédio onde residiam na Avenida Borges de Medeiros, em frente à Lagoa Rodrigo de Freitas, Zona Sul do Rio de Janeiro. Puxou conversa.
Heleno: — Bom dia, senhorita. Por que essa carinha tão séria logo cedo? Parece que algo anda mal para a senhora?
Analice: — De fato. Estou cansada dessas pessoas chatas que vêm me procurar no meu local de trabalho...
Heleno: — São seus amigos, ou melhor, amigas e clientes?
Analice: — Amigos e clientes. Porém, todos só querem conversar colocando o 0800 na frente.
Heleno: — E o que é esse 0800?
Analice: — O maldito e insuportável ‘fiado’. O famoso e velho ‘faz de graça, pela nossa amizade; na canja; no pago depois; estou sem dinheiro agora; quebra essa; mais adiante acertamos...’. Enfim, cada uma que chega no meu local de trabalho inventa uma desculpa esfarrapada e mais cabeluda que a outra. Quando falo em dinheiro, nossa, parece brincadeira. É nesse momento que começa a choradeira. Virou moda, meu prezado.
Heleno: — Agora entendi. Posso lhe fazer uma pergunta?
Analice: — Esteja à vontade.
Heleno: — Nos conhecemos um tempinho considerável. Apesar disso, nunca soube qual é a sua profissão. Moramos aqui no mesmo prédio, deixamos nossos carros um ao lado do outro... somente o nosso andar é diferenciado. A senhora mora no sexto, eu no segundo. Incrivelmente, sempre nos esbarramos aqui. Não sei o que faz. Para ter uma ideia, coisa de umas duas semanas, mais ou menos, flagrei minha BMW conversando com o seu magnífico HYUNDAI PALISADE...
Heleno: — Quando cheguei, vindo do ‘Parque das Figueiras’, havia bebido todas. Nessa hora, acredite, vi seu ‘pé de borracha’ e o meu pararem de fofocar. Furioso, tentei várias vezes um diálogo, mas não obtive êxito.
Analice: — Que loucura mais esquisita! Se prestou, de fato, a essa besteira de dialogar com os carros?
Heleno: — Sim. Encolerizado com a mudez deles, me enchi de razão, pulei para o volante e apertei meu possante contra essa pilastra às suas costas toda ferrada. Está vendo?
Analice: — Claro. Está visível. Por qual motivo se prestou a tamanha barbaridade?
Heleno, caiu na gargalhada: — Fora de mim. ‘Tri-bêbado’. Dei, fora de meu juízo perfeito, com o traseiro da minha charanga umas cinco ou seis vezes. Apesar dos pesares, tanto a minha BMW, como a gostosa da sua Hyundai se mantiveram com as línguas presas.
Analice: — Agora tudo se esclareceu. Então foi o senhor? Por isso seu carro ‘desapareceu’ aqui do pedaço?
Heleno: — Por certo. Apesar do amassado que provoquei não só na pilastra, arranhei bastante a minha adorável e confortável ‘belezura...’
Analice: — Confessa, então, com todas as letras que foi a sua falta de consciência?
Heleno, dando uma de João sem braço: — Não, senhorita. Foi meu carro. Na verdade, ‘ele se bateu’ por conta própria, só para me sacanear...
Analice: — OK. E o senhor, obviamente, comunicou ao síndico?
Heleno: — Claaaaaaaro... que não.
Analice: — Pois deveria, apesar das câmeras de monitoramento. Sabia que o porteiro da noite, seu Amaral, na manhã seguinte, logo que saí do elevador, veio bater língua comigo?
Heleno:
— Não tinha conhecimento desse particular! E o que foi que a senhorita disse a ele?
Analice: — Que desconhecia quem havia feito tal estrago. E, como não havia outro carro aqui —, ele fotografou a pilastra e, de lambuja —, meu carro. Me exibiu as fotos. O senhor, como morador, deveria ter informado ao porteiro ou ao síndico. A que horas foi que o senhor cometeu tal absurdo?
Heleno: — Eu não bati, senhorita. Quem bateu, ou cometeu tal absurdo, como acabou de dizer, foi meu carro. Não lembro da hora certa. Creio que por volta das três da manhã...
Analice: — Sabia que o síndico me acionou na justiça querendo que eu pague os estragos que o senhor fez nessa pilastra?
Heleno: — Estou sabendo agora desse pormenor. Todavia, a senhorita ‘vai tirar de letra’. Não terá que pagar coisa nenhuma...
Analice: — Como assim?
Heleno: — Cadê as provas?
Analice: — As câmeras. Olhe ao nosso entorno. Tem um equipamento frontal em pleno funcionamento, como se um vigiasse o outro. Nesse momento, alguém deve estar nos monitorando...
Heleno: — Posso lhe contar um segredo? Morre aqui. Se a senhorita der com a língua nos dentes — perdão pelas palavras — poderá se dar mal.
Analice: — Sou toda virada em ouvidos duplos. Continue...
Heleno: — O porteiro que estava naquele dia, o seu Amaral... precisava de uns trocados...
Analice: —... E daí? Qual a ligação?
Heleno: — Ele andava sem grana para assistir à filhinha, de quatro anos, carente de médico urgente.
Analice: — Não entendi. Repito, insistentemente: qual a ligação?
Heleno: — Sempre que chego da rua, bato um papo com eles, os porteiros. Nesse dia, se fazia de plantão meu velho amigo Amaral. Gente fina... passei a ele umas ‘biritas’...
Analice, incrédula: — Umas biritas?
Heleno: — Isso. Cachaça da boa. Cerveja, acompanhado de uns franguinhos fritos. Nesse dia, além de algumas latinhas de cerveja, dei-lhe uma ‘grana’ para as despesas médicas...
Analice: — Deixa ver se entendi. Em troca, pediu ao seu Amaral que subornasse as fitas de gravação que comprovavam a sua maldita falta de modos?
Heleno: — Sim. A senhorita é inteligente. Cantou a pedra certa. Portanto, concluindo, só vão descobrir se a senhorita soltar a língua... e se fizer isso, vai se dar mal. Repare. Nada me liga ao incidente. Para encurtar conversa, melhor a senhorita arcar com o ‘molestamento’ ou com o assediamento da pilastra.
Analice muito séria e de cenho franzido: — Simples assim?
Heleno: — Com certeza. Por eu estar bêbado, precisei tirar o carro minutos depois e deixá-lo meio que afastado, contíguo à ‘Barraca do Índio’. Pela manhã, levei para a concessionária. Paguei e ainda resta acertar uma ‘baba’ feia. Resumindo: eu fico com o meu prejuízo e a senhorita se vira com a pilastra. Elas por elas e fim de papo. Amigos? Aperta aqui.
Analice, nesse momento, enfureceu os ânimos. Subiu nas tamancas:
— Seu imbecil, irresponsável. Saiba que gravei toda a nossa conversa em meu celular. O senhor acabou de se entregar a mim, de bandeja.
Heleno, ao ver o aparelho que o colocava literalmente em maus lençóis e, pior, nas mãos daquela estranha bela e inimitável, partiu para cima. Esperta como uma gata assustada, a jovem correu de um lado e de outro, ziguezagueando entre os carros de outros residentes e, sobretudo, mais safa, esperta e ladina que seu perseguidor, não lhe custou galgar a portaria. Em lá chegando, o casal suando em bicas, deu de cara com o síndico e com o outro porteiro que, naquela manhã, viera em substituição ao seu Amaral. Esse funcionário perdeu o emprego e Heleno, face à conversação via celular e, de contrapeso, o que o síndico presenciou de corpo presente pelas câmeras, reverteu todas as despesas para o velhaco morador. Sem falar na soma vultuosa a esse evento da pilastra, o sujeito devia nove meses de condomínio atrasado.
Título e Texto: Carina Bratt, da Freguesia do Ó, São Paulo, Capital, 18-8-2024
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