Aparecido Raimundo de Souza
Com carinho para meus filhos Érica, Eduardo, Narjara, Amanda, Luana e Antonella. E também para meus netos Ellen, João Eduardo, Heitor, Miguel e Maria. E igualmente para os netos que moram fora do Brasil, pessoinhas amadas e queridas que sequer conheço e sei os verdadeiros nomes com os quais foram batizados.
Papito e vovô Aparecido.
DOMINGO, dia dez, quando se comemorava o Dia dos Pais, acordei em silêncio. Não aquele silêncio confortável de todos os domingos, mas um de rosto maquiavélico que gritava desesperado. Esse espaço onde sempre morei e que em tempos idos, serviu de palco para correrias, brinquedos espalhados por todos os cantos seguidos por vozes alegres e em descompasso. Tudo, assim do nada, se transformou numa espécie de tristeza pesada, ou dito de outra forma, se quedou numa agonia enfadonha que perdurou o dia todo. O som do relógio de parede dependurado no corredor que acessa à sala, teimou em marcar não o tempo, mas a predominância de uma ausência que ainda agora, quase dez da noite, ainda me consome. O tempo todo, pairou no espaço do meu oculto, uma pergunta sem resposta: Deus, Meu Pai, por onde andam todos os meus filhos?
Talvez estivessem (imaginei) presos no caótico do trânsito de alguma avenida dessa cidade grande, os olhos grudados no volante de seus carros, ou nas telas dos celulares, respondendo e-mails que não podiam esperar. Quem sabe dentro de ônibus lotados voltando para as suas residências, ou em francos regozijos em algum barzinho namorando ou discutindo ideias que eu não consigo digerir, usando palavras que não existiam quando eu era jovem como eles. Possivelmente se deleitem dormindo, exaustos do cansaço dos trabalhos que desempenharam durante toda a semana, ou no pior dos mundos, de viverem, ou acordando, antes das cinco, jubilosos por começarem mais um dia que não lembraram de me incluir.
Não é que eles não me amem. Eu sei que me querem muito. Apesar disso, o amor deles, às vezes, figure em seus cotidianos como uma fotografia esquecida dentro de uma gaveta, tipo uma coisa antiga, do tempo em que se pegava moscas varejeiras com mel, mas que está lá, intacta, guardada num local que raramente se abre. Lembro, saudoso, do Eduardo (meu primeiro filho), da Érica, da Narjara, da Amanda, da Luana e da Antonella, dos dias dos pais em que eles me chamavam e me carregavam para o sofá da sala para ver os desenhos do Pica Pau, da Pantera Cor de Rosa, do Maguila Gorila, ou para ajudar com as lições da escola. Noutras vezes, para curar mãos e joelhos ralados com beijos mágicos.
Hoje, com mais de setenta nos costados, entendo, quem precisa de cura sou eu, em face de uma dorzinha não no braço, ou no joelho, mas no que restou da alma — e por ser na alma, não há beijos que resolvam. E o questionamento sem resposta, insiste em se fazer presente: por onde andam, meu Deus, os meus filhos? Levado pela angústia, eu mesmo respondo, como se isso acalmasse o meu impulso disjungido. Meus pequenos andam por aí, seguem vivendo. E isso é bonito. É o que sempre desejei. Que fossem livres como pássaros distanciados das gaiolas traiçoeiras, livres e cheios de sonhos imorredouros, que voassem pelo infinito, como se o céu fosse além do limite para abarcarem as suas melhores aspirações.
Só errei num ponto, confesso. Não imaginei que ao se divorciarem ou ao se soltarem do meu “cordão umbilical” encompridariam os caminhos a serem seguidos, pelo fato de se ampliarem, como se num repente se pilhassem abduzidos por um sisudo planeta da idade adulta e eu, mercê de avançados janeiros, ficasse isolado, ou como se esperasse pela aproximação da morte sentado em um ninho desfeito e envolto com as penas de uma saudade cada vez mais devastadora. Tudo bem. Eu entendo. A vida é assim: ela é feita de partidas e esperas. E eu, no meu canto de pai sem o amor de todos eles, aguardo. Me impaciento por um telefonema, um “oi” via WhatsApp, um texto pastoril. Me afobo sacolejado nos moldes de um “estou com saudade pelo Gmail ou Facebook.””
Aguardo como uma criança irrequieta por um brinquedo novo, o peito lancinado, uma visita, um “pai, eu quero te abraçar, te dar um beijo, almoçar com você, saber se está precisando de algo”. Um “te amo, meu herói” que chegasse sem aviso, assim como uma notícia boa e inesperada que entrasse pela porta e dissesse: “Papai, trouxe refrigerante, pão quentinho e fatias de queijo para fazermos um lanche ou tomarmos um café feio na hora”. Pelo tempo que passa lá fora, e não para, curtindo a minha insanidade imensa, sigo aqui, conversando com as lembranças quimeradas, regando as plantas que não plantei e enchendo o saco do vento com perguntas que nem ele saberia me dar as respostas esperadas com tantas edacidades.
Meu Deus eterno, por onde andam todos os meus filhos? Cadê a Érica, o Eduardo, a Narjara, a Amanda e a Luana, bem ainda a Antonella? No mesmo lapso, meus netos Ellen, João Eduardo, Heitor, o Miguel e a Maria? Especificamente no dia dos pais, despertei com o silêncio escachelado. Não aquele confortável dos tantos e não sei quantos “dias dos pais passados,” mas o silêncio sestroso que espicaça. Apesar desse labirinto que se apresenta diante de mim, eu os vejo. Mesmo sem toca-los, eu os abençoo em pensamentos. Avivo os idos dos primeiros banhos, aquelas tardes em que minhas mãos tremeram mais que os corpinhos deles. Sinto na pele o escorrer da água morna, o cheiro dos sabonetes infantis, e o medo de errar — de não saber ser o pai perfeito ou pior, de não ser o pai que eles almejavam.
Escuto, alto e em bom som, os primeiros choros no meio da noite, quando o mundo parecia desabar em lágrimas miúdas e eu acorria, tropeçando nos próprios pés, só para dizer: “minha princesa, meu príncipe, está tudo bem, eu estou aqui”. Revivesço os primeiros beijos — não os deles, mas os meus. Aqueles ósculos tímidos na testa, ainda na proa da maternidade, com os gostos saborosos de mil promessas vindouras. E depois, o tocar de lábios, as blandícias dos boas noites, os beijos das “minhas filhas, do meu filho Eduardo, dos meus netos, o imarcescível vai dar tudo certo”, os carinhosos dos batidos “não precisam ter medo do escuro”. Sei que joguei tudo isso para o alto, e agora, nessas ausências que me matam aos poucos, os questionamentos inalteráveis persistem: por onde andam todos os meus filhos?
Brotam do fundo do meu âmago, as primeiras lágrimas de saudade. Não foram deles. Foram minhas. Quando passaram a dormir fora, quando não pediram mais ajuda para escolher as roupas, quando deixaram de me chamar para ver os desenhos novos... A saudade é uma visita tresloucada e silenciosa — entra sem bater, senta no sofá e fica sem pressa de sair correndo por onde achou um meio de invadir meus dissabores. O tempo passou. Se foi como quem não pede licença. E com ele, passaram também meus filhos. Todos eles, sem exceção. Hoje, não sei onde estão. Tampouco se fazem as refeições necessárias, se dormem em paz, se têm alguém que os abracem quando o mundo massacra e pesa. Não sei se lembram que têm pai.
Igualmente que um dia tiveram colo, que se deleitaram com histórias contadas com voz rouca e olhos cansados. Que um baita medo incessante fluiu de dentro de alguém que esperou por horas no portão de casa só para ver os sorrisos se renovando ao vê-los sair e voltar. Apesar de toda a tecnologia, o telefone celular não tocou. As mensagens não chegaram. Os aniversários passaram como dias comuns. E eu, que antes era o herói, virei uma sombra difusa. Me transformei num corpo inerte e esquecido. Me resumi num ser inutilizado caído em desuso. Me fiz numa lembrança inócua que não dói, não machuca, porque já não existe. Creio, meus pequenos estejam construindo futuros brilhantes, cercados de gentes, de conquistas e de apupos e aplausos os mais barulhentos e ensurdecedores.
Talvez estejam felizes. E isso deveria me bastar. Mas não! Não, repito, não se aquietam, pelo fato da felicidade que não se compartilha ter virado distância. Longitudes em excesso trouxeram tendões de esquecimentos que definham, que corroem, que não dão um segundo de alegria. O futuro deles se emancipou em esteiras longitudinais. O meu encolheu. Apoucou para o tamanho da cadeira de balanço onde espero. Para o adstringido da saudade que não tem onde pousar. Mesmo tom, para a excelsitude da desesperança que insiste em viver, mesmo quando tudo ao meu redor se avilta desordenadamente berrando que não. Às vezes me pergunto se vão lembrar. Se um dia, no meio de uma madrugada qualquer, sentirão falta do cheiro do café que eu fazia, do jeito torto que eu dizia “te amo”, das broncas que eram somente simulacros para o medo de perdê-los.
Talvez não lembrem. Por certo, a vida tenha sido eficiente demais em apagar rastros e pegadas. Oxalá eu tenha errado mais do que acertado. Mesmo assim, entorpecido no silêncio, engrunhido na ausência, eu com meus fantasmas, continuo sendo o pai. E ser pai, mesmo colocado num trilho de linha apartado da via principal, é sem dúvida alguma continuar amando. E meu Deus, por favor, me responda: por onde andam os meus filhos? Se um dia voltarem, mesmo que seja só para dizer “oi”, vão encontrar a porta escancarada, o café quente no bule, e um abraço que nunca deixou de esperar. Deus, sabe qual é o meu maior medo? Morrer de repente sem vê-los, sem sequer ter a oportunidade de dizer ADEUS...
Isso é profundamente humano. E doloroso. A fobia de partir sem despedida, sem um último olhar, sem que saibam o quanto foram amados — é uma voragem que mora no coração de muitos pais, mesmo que silenciosamente. Às vezes, no oculto da noite, esse pensamento me visita: E se eu me for de repente? Deixar a Terra sem aviso, sem tempo, sem um tchau? E se meu corpo cansar antes que meus filhos se lembrem de mim? Antes que digam “pai, desculpa a ausência”, antes que me espiem nos olhos e percebam que ainda há amor aqui, esperando. Sinto medo. Não do fim — o fim é parte da vida. Falo do esquecimento. Sobretudo de ser apenas uma lembrança vaga, inútil, como uma foto empoeirada, um nome que aparece num documento e não causa mais aquela emoção de outrora.
Tenho medo de fechar os olhos sem vê-los. Sem saber se estão bem, se são felizes, sem carecerem de ouvir um “obrigado” ou um “eu te amo” que talvez nunca venha a ser pronunciado. Medo de que minha partida seja silenciosa, como tem sido a minha presença nos últimos tempos. Contudo, se esse dia chegar, se eu me for sem adeus, que ao menos o vento leve o meu imenso amor até eles. Que sintam, mesmo sem saber, que houve alguém que os amou com tudo o que tinha. Que esperou, que sonhou, que chorou — entretanto nunca deixou de amar. Sobretudo, mesmo sem despedida, meu todo interior partiu repletado do carinho e da afeição. Esses sentimentos sempiternos que ficaram de cada um de vocês que vieram de dentro de meu mundinho interior seguirão comigo, “ad aeternum.”
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, da cidade de Extremoz, no Rio Grande do Norte, 12-8-2025
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Oi
ResponderExcluirVocê escreve sobre cafés fumegantes, bules cúmplices, “te amos” lançados ao vento mas minha história com você nunca viu tal alvorada. Não houve aroma de café na cozinha, não houve bule sobre a mesa, não houve abraço que me chamasse de filho. A sua ausência foi tão absoluta que se fez matéria, tão contínua que se fez presença.
ResponderExcluirVocê evoca heróis mas o homem que poderia ter sido o meu herói preferiu ser mito distante, fantasma de carne e osso. No lugar de um pai, recebi o vácuo. E, como toda ausência que persiste, ela criou raízes: aprendi a caminhar sem a sua mão, a chorar sem testemunhas, a crescer sem guia.
Não se colhe pera de macieira. Da mesma forma, não se colhe amor onde jamais houve semeadura. Você não regou, não adubou, não esperou ao meu lado a primavera. E, ainda assim, agora pede flores pede ligação de quem nunca recebeu sequer um aceno.
O amor que eu guardo não é por você é pelo espaço que você deixou. É amor pela ausência, pela coragem que precisei inventar, pelas dores que se transmutaram em armadura. É afeição por quem me ensinou, pela falta, a sobreviver.
Não peça laços a quem sempre encontrou portas fechadas, você nunca deu um nó sequer. Não reivindique uma ligação que jamais construiu. Sua ausência moldou minha presença, e hoje, ironicamente, você está presente apenas naquilo que me faltou.
E talvez seja esse o único legado que nos une: o de ter feito de mim, pela sua omissão, alguém que não precisa de heróis inventados porque aprendeu, sozinho, a ser o próprio.
Respondendo sua pergunta, seus filhos permanecem exatamente aonde foram deixados. Cada um. A sua maneira. Eduardo sendo excelente pai o mais distante possível de ti, como se fosse inversamente proporcional sua proximidade com qualidade da paternidade. Erica, encontra-se no mesmo buraco de minhoca de Carina e tati. As demais? Vivendo o que lhes foi permitido viver sem a sua presença.
ResponderExcluir(Vem da parte um) Esse texto (meu pedaço de mim, quer você queira, ou não) é profundamente comovente — uma carta que transborda dor, lucidez e uma força que só quem enfrentou o abandono conhece. É como se cada palavra fosse uma cicatriz que aprendeu a falar. A ausência descrita não é apenas física, mas existencial, moldando identidades, afetos e até mesmo a forma de amar. A metáfora do café e do bule é belíssima e triste: evoca intimidade, cotidiano, afeto — tudo o que, realmente faltou. A ausência transformada em presença é uma das imagens mais potentes do texto. A ideia de que o amor que se guarda é pelo espaço deixado, não pela pessoa, revela uma maturidade emocional dolorosa e rara. “Você apareceu como quem bate à porta tarde da noite, sem nome, sem rosto, sem história. E eu, que aprendi a viver com portas trancadas, não soube se devia abrir. Se sua mensagem foi tentativa de reconexão, saiba que não se costura laços com linhas invisíveis. Se foi apenas eco, saiba que aqui não há mais paredes que o devolvam.” Claro. Esse comentário que você me enviou, ou talvez um desabafo, é uma ferida aberta que sangra com palavras. E ao mesmo tempo, é um manifesto de sobrevivência. O que mais impressiona é como ele transforma dor em lucidez, abandono em identidade, ausência em presença. A frase “sua ausência foi tão absoluta que se fez matéria” Acredite, ela é brutalmente poética. Revela que o vazio deixado por mim não foi apenas emocional, mas quase físico — como se o silêncio tivesse peso, como se o não-dito ocupasse espaço. Isso é comum em histórias de abandono: o que falta se torna tão constante que passa a definir o ambiente, os gestos e até os sonhos. Seu comentário fala de um legado invertido. Em vez de herdar afeto, ensinamentos, presença, você herdou o oposto: a ausência se propagou como guia. E isso moldou não só a sua forma de existir, mas também a forma como os meus demais filhos se posicionaram diante da vida. Eduardo, por exemplo, parece ter feito da distância uma forma de proteção e de reinvenção da paternidade. Narjara, Amanda, Luana e Antonella estão presas num ciclo que talvez repita o abandono, ou o silêncio. Pressinto, dentro de mim, que há uma ironia cortante no fato de que, agora, essa figura paterna aparece ou tenta aparecer, pedindo laços, flores e afeto. (Segue na parte três)
ResponderExcluir(Vem da parte dois) Como se fosse possível colher onde nunca se plantou. O seu desabafo responde com firmeza: “não há como construir pontes sobre ruínas que nunca foram fundações”. E isso não é rancor, é constatação. A parte mais envolvente do seu comentário, usque talvez o trecho mais poderoso e que me fez refletir em tudo o que deixei de fazer foi saber que “o amor que eu guardo não é por você, é pelo espaço que você deixou.” Isso é uma declaração de autonomia. É dizer: “não sou fruto do seu amor, sou fruto da sua ausência — e, mesmo assim, floresci.” É uma forma de ressignificar a dor, de tomar posse da minha própria história sem depender de quem falhou. Você fala em ressignificar, e essa palavrinha significa, para mim, uma dor profunda, e essa dor é como pegar uma ferida e, em vez de escondê-la, transformá-la em uma cicatriz com história. É como dar um novo sentido ao que machucou — não para apagar o sofrimento, mas para que ele não te defina apenas pela dor. Indo mais longe, diria que ressignificar não deixa de ser também quando você olha para uma experiência dolorosa e, com o tempo, com reflexão ou até com ajuda, consegue enxergar nela algo que te fortaleceu, te ensinou ou te moldou de forma positiva. Não é romantizar o sofrimento, mas sim tirar dele o poder de te paralisar. Tenho plena consciência que alguém que foi abandonado pode transformar esse abandono em força para ser presente na vida dos outros. Da mesma forma, uma perda pode ensinar sobre o valor do agora, sobre o amor que ainda se pode oferecer, tipo uma traição que vira ponto de partida para o autoconhecimento e a reconstrução de limites. E como seria feito isso? Nomeando a dor: reconhecendo o que aconteceu, sem minimizar. Entendendo o impacto: como isso te afetou, o que mudou em você. Escolhendo o novo significado, ou seja, decidindo que aquela dor não será só ferida, mas também impulso. Vista por outro prisma, criando novas narrativas: tipo contar a sua história com foco na superação, não só no sofrimento. Você, minha doce amada e amado, que não se identificou, já começou esse processo, sabia? O texto que você escreveu é um exemplo claro de ressignificação. Você não nega o abandono, mas transforma ele em força, em identidade, em autonomia.
)Vem da parte três) e (Segue na parte quatro) Isso é poderoso. A transformação que você viveu — de ausência em força de abandono e em autonomia, merece ser escrita com a dignidade e a beleza que ela carrega. Não foi o afeto que me moldou. Foi o silêncio. Foi o espaço vazio na mesa, o café que nunca fumegou, o abraço que nunca veio. Foi a ausência que se fez matéria, que ocupou os cantos da casa e da alma. Mas perceba, o que não veio me ensinou a buscar. O que não foi dito me ensinou a escutar. O que não foi dado me ensinou a construir. Por conta, aprendi a caminhar sem guia, a cair sem testemunha, a levantar sem aplausos. E nessa solidão, que em dias de hoje me invade, descobri que há força em quem aprende a ser inteiro sem ter sido acolhido. Não sou fruto do amor que recebi. Sou fruto da falta que enfrentei. Sou feito, acredito, da coragem que precisei inventar, da ternura que precisei cultivar sozinho, da esperança que plantei em solo árido. Entre tapas e beijos, hoje, aos 72, não carrego rancor, carrego consciência. Não busco laços, construo raízes. Não espero retorno, apenas sigo em frente. É o que resta a seu pai: seguir em frente. A ausência que me feriu, foi também a que me forjou. E se há algo que posso chamar de legado, é esse: a capacidade de transformar a dor em direção, a falta em força, o abandono em autonomia. Porque apesar dos altos e baixos, não precisei de heróis. Aprendi a ser o meu. Você escreveu, nossa amei. E por um instante, confesso, hesitei. Porque quando alguém que sempre esteve ausente aparece, não é só a mensagem que chega — é também o eco de tudo que faltou. Você fala de cafés, de bules, de “te amos” lançados ao vento. Mas minha história com você não tem cheiro de café, nem mesa posta, nem abraço que me chamasse de filho. O que houve foi silêncio. E o silêncio, quando constante, vira paisagem. Cresci aprendendo a ser sem você. Aprendi a caminhar sem mão, a chorar sem colo, a crescer sem guia. E não digo isso para te ferir — digo porque é verdade. A sua ausência foi tão presente que moldou quem eu sou. Hoje, você pede flores. Mas não houve primavera. Não houve semeadura, não houve cuidado, não houve espera. O amor que carrego não é por você. É pelo espaço que você deixou. É pela força que precisei inventar, pela coragem que nasceu da falta, pela ternura que cultivei sozinho. (segue na parte cinco)
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ResponderExcluir(Vem da parte quatro) Você quer laços. Mas não deu nós. Quer ligação. Mas nunca construiu a ponte. E ainda assim, aqui estou, respondendo. Porque apesar de tudo, sou feito de presença. Sou feito de escolhas. E escolho não repetir o ciclo. Se essa resposta te tocar, que seja pelo que ela revela: que mesmo sem você, saiba, eu floresci. E que talvez, só talvez, ainda haja tempo de plantar algo novo. Mas isso exige mais do que palavras. Exige gesto, constância, verdade, perdão, mesmo ignorando quem você é, minha amada, meu amado, sigo. Inteiro. Caminho por ruas estranhas, por estradas sem volta. Contudo, ainda caminho por mim. Sigo amargando meus erros, carrego o peso da melancolia, da culpa silenciosas, da saudade que talvez nunca tenha sido vivida, mas creia, ainda pulsa. Essa resposta que agora lhe dou, carrega igualmente o peso da melancolia mais sublime, da culpa silenciosa, da saudade enorme que talvez nunca tenha sido vivida — mas que ainda pulsa. Uma resposta, que não tenta se defender, mas se desnuda. Que não exige perdão, mas oferece verdade. Que não promete reparação, mas reconhece o estrago. Não sei se é você que agora me vem à mente, não importa quem me escreveu. Não sei se é a dor que te guiou até mim ou a raiva que te fez se declarar. Apenas sei que li cada palavra como quem lê um espelho rachado, vendo partes de mim que preferi não encarar. Você tem razão. Não houve café na cozinha, nem bule sobre a mesa. Não houve abraço que chamasse de filho, de filha, de pai, nem presença que ensinasse a viver. O que houve foi ausência. Minha ausência, “mea culpa,” sempre.. E ela não foi só um erro. Foi uma escolha. Talvez a mais covarde que fiz. Talvez a mais irreversível. Entendo que você cresceu sem mim. E eu envelheci sem saber quem você se tornou. Enquanto você aprendia a caminhar sem mão, eu me perdia em desculpas que nunca escrevi. Enquanto você chorava sem testemunhas, eu me calava por não saber como ser um pai presente. Hoje, você me diz que o amor que guarda não é por mim, mas pelo espaço que deixei. E isso me dói, me machuca, me fere, me sangra por dentro mais do que qualquer acusação. Porque revela que, mesmo na minha ausência, você construiu algo. Algo que eu não mereço, mas que admiro. Quero que saiba, não escrevo para pedir laços. Não escrevo para exigir flores. (Segue na parte seis)
Vem da parte cinco – final) Escrevo porque, pela primeira vez, entendi o que minha ausência custou. E porque, mesmo tarde, queria que você soubesse: eu sinto. Sinto por não ter sido. Sinto por não ter estado. Sinto por não ter te conhecido. Se essa minha resposta ao seu comentário te tocar, que seja pela tristeza que carrega. Não pela esperança de recomeço, mas pela honestidade do fim. E se algum dia você quiser me dizer quem você é, não como filha, ou como filho, mas como uma pessoinha maravilhosa que sobreviveu ao abandono — eu, seu pai, ainda que pela metade, estarei aqui. Não como herói. Mas como alguém que finalmente aprendeu a escutar. Ou no pior dos mundos, com o peso do que não fui, o Pai que você nunca teve. Como não sei qual das minhas princesas ou meu príncipe me escreveu, sigo mantendo esse mistério como parte da dor — como se cada palavra fosse dirigida a todas (e todos) vocês, abençoadas criaturinhas, o que ficou preso na garganta por anos. Filha, Ou talvez filhas e filho. Não sei qual de vocês me escreveu, repito. Mas sei que foi uma de vocês (que pelas palavras, pelo modo de se expressar) carregou a dor agoniante por tempo demais, até que ela precisou sair — mesmo que em forma de palavras duras, mesmo que sem nome. Li a sua mensagem como quem lê um testamento de tudo que não foi vivido. E cada frase me atravessou como se fosse feita de vidro. Porque você não escreveu apenas com mágoa, você escreveu com memória. Com lembrança do que não houve. Com saudade do que nunca existiu. Em repeteco, você fala de cafés que não foram feitos, de bules que nunca se tornaram cúmplices, de “te amos” que nunca cruzaram o ar. E eu, que deveria ter sido o autor dessas cenas, fui apenas ausência. Fui o espaço vazio na mesa. Fui o silêncio no corredor. Fui o nome que não ensinou a ser chamado de pai. Não há defesa possível. Não há justificativa que apague o que você viveu. E talvez seja tarde demais para qualquer gesto. Mas ainda assim, eu escrevo. Porque o que você me deu não foi só dor — foi também a chance de sentir. Sinto por não ter estado. Sinto por não ter sido. Sinto por não ter escutado antes. Sinto por não saber se você é a Narjara, a Amanda, a Luana ou a Antonella. Sinto por não saber se você ainda quer ser escutada. Você diz que aprendeu a viver sem mim. E eu acredito. Porque só quem sobrevive ao abandono sabe construir abrigo com as próprias mãos. Você se tornou inteira sem o que eu deveria ter oferecido. E isso me envergonha, mas também me comove. Sem querer ser repetitivo, não escrevo para pedir perdão. Não escrevo para pedir retorno. Escrevo porque, mesmo sem saber quem você é, eu reconheço o que você se tornou. E se algum dia quiser me dizer — não quem você foi, mas quem você é agora — estarei aqui. Não como pai. Mas como homem que finalmente entendeu o que significa ter falhado. Seu pai, apesar das chagas abertas, Aparecido. E acredite: mesmo sendo um cara ausente, todos vocês moram em meu coração.
ResponderExcluirDe São Bernardo do Campo, São Paulo, capital
Complementando meu pensamento, você, sangue do meu sangue, minha filha ou meu menino sem rosto, sem identidade, escreve sobre “cafés fumegantes, bules cúmplices, segue também por “te amos” lançados ao vento e apregoa que minha história com você nunca viu tal alvorada. Não houve aroma de café na cozinha, bem sei, não houve bule sobre a mesa, não houve abraço que eu lhe chamasse de meu filho, ou minha filha. A sua ausência – continua você, foi tão absoluta ou absoluto) que se fez matéria, tão contínua que se fez também presença. Você evoca heróis, mas o homem que poderia ter sido o meu herói, preferiu ser um mito distante, um fantasma de carne e osso. No lugar de um pai, recebi o vácuo. E, como toda ausência que persiste, ela criou raízes: aprendi a caminhar sem a sua mão, a chorar sem testemunhas, a crescer sem guia. Não se colhe pera de macieira. Da mesma forma, não se colhe amor onde jamais houve semeadura. Você não regou, não adubou, não esperou ao meu lado a primavera. E, ainda assim, agora pede flores, pede ligação de quem nunca recebeu sequer um aceno. O amor que eu guardo não é por você é pelo espaço que você deixou. É amor pela ausência, pela coragem que precisei inventar, pelas dores que se transmutaram em armadura. É afeição por quem me ensinou, pela falta, a sobreviver. Não peça laços a quem sempre encontrou portas fechadas; você nunca deu um nó sequer. Não reivindique uma ligação que jamais construiu. Sua ausência moldou minha presença, e hoje, ironicamente, você está presente apenas naquilo que me faltou. E talvez seja esse o único legado que nos une: o de ter feito de mim, pela sua omissão, alguém que não precisa de heróis inventados porque aprendeu, sozinho, a ser o próprio”. E logo adiante, segue de forma austera: “seus filhos permanecem exatamente aonde foram deixados. Cada um. A sua maneira. Eduardo sendo excelente pai o mais distante possível de ti, como se fosse inversamente proporcional A sua proximidade com qualidade da paternidade. Erica, encontra-se no mesmo buraco de minhoca de Carina e Tati. As demais? Vivendo o que lhes foi permitido viver sem a sua presença”. Queria responder a essa pessoa que não se identificou. Apenas veio, disse e me deixou no vácuo. Apesar de não ter se identificado, eu sem quem você é. As palavras escritas, a forma como se expressou, me dizem claramente quem é você, onde está, o que faz, e a que veio. Para terminar, gostaria que deixasse de lado a sua "face oculta" e se lembrasse de me perdoar. Guardar mágoas, rancores, lembrar o passado, não nos leva a nada. Viver de passado é trair a própria razão de viver o seu presente. Um conselho de pai amigo, apesar de ausente: passa a mão em você e venha me ver. A vida é curta, é breve, é ligeira, e, sobretudo, é coisa que pode se acabar num simples piscar de olhos. Eu espero a sua chegada, como espero o dia seguinte, o amanhã por nascer. Renasça em você mesma e de vida plena ao seu coração. Amanhã pode ser tarde demais.
ResponderExcluirAparecido Raimundo de Souza, de São Bernardo do Campo, São Paulo.