sábado, 4 de janeiro de 2014

A obsessão antiamericana (II)

Mais uns parágrafos do excelente livro de Jean-François Revel, A obsessão antiamericana:

“Na prática, e por toda a Europa, mas sobretudo na França, tanto a excepção como a diversidade culturais são nomes de código para subsídios e para quotas limitativas. A eterna cantilena de que ‘os bens culturais não são simples mercadorias’ não passa de um chafurdar na vulgaridade. Quem é que disse tal coisa? Mas também não são o produto simples dos financiamentos do Estado, ou então a pintura soviética seria a mais bela do mundo. Os defensores do protecionismo e das subvenções contradizem-se. Toda esta algazarra que fazem – dizem eles – é contra o dinheiro. E ao mesmo tempo argumentam que a criação é condicionada pelo dinheiro, desde que se trate de dinheiro público.
Mas se é verdade que por vezes o talento precisa de auxílio, também é verdade que o auxílio não dá talento a ninguém.

‘Vejam o cinema italiano’, dizem-nos. ‘Acabaram-se as ajudas e praticamente desapareceu.’ No entanto, nos anos do pós-guerra, a causa do brilho do cinema italiano não se chamava subvenção: chamava-se Rosselini e De Sica, Blasetti e Castellani, Visconti e Fellini. Também foi graças à imaginação dos seus criadores e não aos cheques dos ministros que o cinema espanhol ficou a dever o impulso que se verificou nos anos 1980. E se o cinema francês conquistou em 2001 o primeiro lugar do mercado, tanto dentro como além-fronteiras, não foi por ter recebido mais subsídios do que antes, foi por ter produzido uma mão-cheia de filmes cuja qualidade é perceptível para o grande público e não somente para os autores.”

“Dentro da mesma linha de argumentação, volto a lembrar o telefilme em vários episódios que foi rodado e exibido nos Estados Unidos por meados dos anos 1970, acerca do caso Watergate, ainda a quente, pouco depois do escândalo e da demissão de Richard Nixon. O ator que desempenhava o papel do presidente era quase um sósia de Nixon. Todos os restantes personagens correspondiam a pessoas reais e perfeitamente identificáveis. E não foi o único escândalo que forneceu a trama para realizações destinadas ao pequeno ou ao grande ecrã, com adaptações que roçam de perto a realidade, quer dos factos, quer dos seus intérpretes históricos.

Pela minha parte, continuo à espera de um telefilme francês sobre o direito de violação de segredo cometido por ocasião da compra da Triangle pela Pechiney, ou sobre os prevaricadores em causa que, segundo parece, se encontravam situados ao mais alto nível do Estado francês. Ou sobre o escândalo do Crédit Lyonnais, ou da Elf. Para se poderem comparar com o modelo americano e com a coragem que demonstra, esses telefilmes franceses deveriam colocar no ecrã a reposição fiel destes episódios históricos pouco lisonjeiros para a França, com os intérpretes cuidadosamente decalcados sobre os personagens originais. Acho que vamos ter que esperar ainda um bom bocado.

Ruminando uns restos de marxismo do mais bafiento, a ministra da Cultura, Catherine Tasca, disse ao Figaro Magazine (9 de fevereiro de 2002): ‘As leis do mercado são as insígnias do poderio americano.’ Nada disso! Não são as insígnias, são a explicação.”

“Por muito que isso desagrade à gente do cinema, a cultura também é um pouco de literatura, de ciência, de arquitetura, de pintura. Consideremos os factos: o período em que o romance americano mais influenciou a literatura europeia foi entre as duas guerras, quando os Estados Unidos não eram ainda a força mais poderosa do planeta. Esse lugar pertencia então à Grã-Bretanha. Depois da Segunda Guerra Mundial, quando os Estados Unidos se tornaram politicamente dominantes, foi a literatura latino-americana que obteve na Europa um grande sucesso, aceite simultaneamente por parte dos críticos e dos leitores e bem superior ao da literatura norte-americana de então, ainda que esta pudesse contar com talentos em nada inferiores ao da época precedente. Como escreveu Mario Vargas Llosa, em outubro de 2000, ‘ainda há cinquenta anos, nós os falantes das línguas hispânicas, constituíamos uma comunidade fechada sobre si mesma, que pouco se aventurava no exterior das nossas fronteiras linguísticas. Hoje em dia, a língua espanhola dá provas de uma vitalidade crescente e tende a construir testas-de-ponte e posições fortes nos cinco continentes. O facto de nos Estados Unidos viverem hoje entre vinte a trinta milhões de hispânicos explica porque é que os dois candidatos à presidência americana, o governador Bush e o vice-presidente Al Gore, também usam a língua espanhola nos seus discursos eleitorais’. Este exemplo mostra como a globalização impulsiona a diversidade cultural, mesmo nos Estados Unidos.

Seria também importante referir a audiência internacional conseguida pela literatura japonesa ao longo da segunda metade do século XX, ou do acesso, lento mas irresistível, de V. S. Naipaul à categoria de autoridade literária mundial, Prêmio Nobel da Literatura em 2001, escritor cujas raízes culturais são múltiplas e complexas, uma mescla de antilhano, de indiano, de inglês, mas sem nada de americano. Depois de 1950, os autores dramáticos franceses têm uma presença mais assídua nos palcos de todo o mundo do que os autores norte-americanos. Os poetas italianos Ungaretti e Montale são mais conhecidos que os seus congéneres americanos.

Poderia continuar ainda por muito tempo. É desagradável ter que listar estas banalidades de manual, mas torna-se necessário fazê-lo para contrariar os alarmistas estúpidos e hipócritas que agitam os perigos que ameaçam a diversidade cultural, precisamente quando essa diversidade nunca foi maior, uma vez que a globalização em marcha desde 1945 permitiu uma circulação cada vez mais ampla de obras intelectuais e o cruzamento de um número crescente de formas estéticas. Alguém me poderá dizer quantos autores franceses estavam traduzidos em japonês no século XIX, e vice-versa? Presentemente são quase todos.”


Anterior:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-