A memória do Sr. Alípio abriu
a torrente de outras lembranças (um acumulado que traz à consciência o tempo
que efetivamente passou...). Personagens que as circunstâncias da vida nos
colocaram pela frente e que nos marcaram de uma forma ou de outra.
Recordei-me daquele que era
conhecido por "Trombalazanas". Funcionário de uma instituição pública
que se dedicava a assuntos da lavoura (com então se dizia), era um fervoroso
católico e militante de não sei quantos movimentos que se dedicavam ao bem comum.
Mas senhor de um feitio terrível, incapaz de um sorriso mesmo quando à sua
volta se desatava justificadamente à gargalhada.
A antipatia que gerava a sua
permanente arrogância, encontrava, porém, um quase paradoxal paralelo na
admiração quase geral que grangeava. Era uma espécie de guardião da moral
pública, pois no jornal mais lido por aqueles lados seviciava sem dó nem
piedade os que considerava venais, designadamente os que julgava como
"escravos da porca da política".
Foram poucos os notáveis de
então que escaparam à sua prosa acusatória, brutal como a sua fisionomia,
despida de qualquer ironia. Em nome da moral pública julgava tudo e todos. E
todos lho consentiam, em especial os visados que não reagiam à violência como
seria de esperar (não me lembro de se ter falado num só processo judicial
contra ele). Para além disso, nas mesas de café como nas conversas de família,
os textos eram motivo de uma geral aprovação, como se naquela comunidade o
personagem desempenhasse o papel indispensável de polícia dos costumes e das
consciências para que especialmente o credenciava aquele rosto sempre fechado e
a total ausência de piedade para com o mais ligeiro pecado ou falha de quem
exercia poder.
Até que um dia um sacerdote,
homem em tudo desigual do personagem, sabe-se lá porquê resolveu recordar no
mesmo jornal responsabilidades públicas já esquecidas que envolviam o técnico
agrícola que se apresentava como engenheiro. Sim, da política passada e já
esquecida porque a memória coletiva é, de facto, muito volátil. Eram referências
a pequenos escândalos, é certo. Mas impróprios de um guardião da ética e da
moral pública. Nesse mesmo dia vaporizou-se a superioridade do
"Trombalazanas" que passou a ser encarado por ali simplesmente como o
trombalazanas que nunca deixaria de ser. Ao ponto de... não, não conto mais, ou ainda dizem que, como
no caso do Sr. Alípio, me estou a inspirar em algum dos trombalazanas da
atualidade.
Título e Texto: JM Ferreira de Almeida, “4R – Quarta República”, 26-07-2014
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