Surpreendeu-me agradavelmente
a mensagem de um leitor sobre minha crônica “muito esclarecedora” (Brim cáqui – lona – blue jeans), onde qualifiquei jeans como azulzinho
envergonhado. Mais agradável ainda, a indicação que ele me fez de um vídeo do
Youtube:
Agradeço ao leitor pela
mensagem e pela indicação desse vídeo, onde retratos feitos por grandes
pintores mostram belíssimos exemplares das roupas que as senhoras usavam
antigamente, nos séculos XVIII e XIX. Um verdadeiro desfile de moda antiga e de
bom gosto, tendo como fundo musical o Capricho italiano, de Tchaikovsky.
Pareceu-me muito acertada a ideia dessa associação visual-auditiva, e recomendo
aos leitores que apreciem esse belo conjunto.
Vendo a beleza das roupas de
antigamente, lamentei ainda mais a vulgaridade arrogante e ostensiva do jeans,
uma decadência global que se renova e generaliza ao longo do tempo. Enquanto
fazia essa comparação, tive o receio de alguns leitores avaliarem como
idiossincrasia o meu repúdio ao azulzinho envergonhado. Se lhe ficou essa
impressão, peço que releia minha crônica, pois o que lamentei e vergastei foi a
indiscutível e lamentável decadência mundial nos trajes. Compare o jeans com as
roupas que desfilam ao som do Capricho italiano, e encontrará muitos pontos em
que a decadência não deixa margem a dúvidas.
Sintetizo a seguir alguns
desses requintes de decadência.
Costuras — Em qualquer roupa, as costuras têm a função de
prender umas partes de tecido nas outras. Só para isso elas serviam, tanto que
boas costureiras e bons alfaiates procuravam ocultá-las. Neste item de
perfeição se esmeravam os artífices, tornando-se tão mais conceituados quanto
melhor fosse o resultado desse “disfarce” das costuras. Na indumentária jeans,
é praticamente nula a possibilidade de obter belos contrastes por meio da
costura, nada seria mais deprimente do que costurar ali tecidos de boa
qualidade e ornamentos de belas cores. Qual a solução? Transformar costuras em
ornatos. E as costuras sentiram-se tão à vontade, que resolveram destacar-se
ainda mais, com linhas arrogantemente grossas, até de cores diferentes.
Rebites — Têm a finalidade de unir chapas ou outras peças de
metal, como também de couro, e são excelentes para isso. Como o tecido de jeans
é quase tão grosseiro quanto couro, até compreendo que eles sirvam para a
função, mas eu nunca os imaginaria como enfeites de roupas. Os fabricantes da
decadência imaginaram, e logo os rebites adquiriram status de ornamentos.
Desbotamento — Quando uma roupa vai se desbotando pelo uso,
quem não se considere mendigo trata logo de substituí-la. Em tempos idos, as
tinturarias refaziam a cor original ou a substituíam por outra, adquirindo a
roupa o aspecto de nova. Não sei se o azulzinho envergonhado (será que a cor
índigo é uma fusão de indigente com mendigo?) admite o trabalho de tintureiros.
Mas o mundo decadente está ávido por qualquer decadência, e a palavra de ordem
foi fabricar jeans pré-desbotados; ou seja, a roupa já é velha no primeiro dia
de uso. Todos acharam isso normal, bom, moderno, e o mundo decadente aderiu a
mais essa decadência.
Manchas — Além do desbotamento, manchas indeléveis podem
inutilizar uma roupa nova ou pouco usada. Os decadentes nem ligam se isso
acontece com o jeans, e até admitem manchas em roupa nova, como se fossem
enfeites desejáveis.
Rasgões — Cortes acidentais em roupas levaram os artífices a
desenvolver o cerzido invisível. Era um item de economia doméstica,
especialmente para o tecido precioso. Hoje os rasgões já vêm de fábrica, e nem
é possível a devolução com base no Procon. Shorts, bermudas e saiotes parecem
aproveitamento de roupa velha, mas muitos já saem das fábricas assim. Elas já
cortam as peças sem a parte das pernas, nem se preocupam em costurar na
extremidade uma bainha, para não desfiar. Quando mais desfiado, melhor. E assim
o mundo decadente prosseguiu sua decadência.
Remendos — Não me lembro de ter visto jeans remendado, embora isso
seja bem adequado para novo passo previsível da decadência. Roupa remendada era
coisa exclusiva de trabalhadores rurais (caipiras), e remendos servem até para
enfeitar fantasias de festas juninas. Mas um remendo bem visível e eloquente
não seria de estranhar na roupa de um decadente de hoje.
Relutei em manter a referência
aos remendos, pois não me espantaria se algum promotor da decadência, zombando
deste retrógrado cronista de bom gosto, resolvesse criar o jeans remendado. Os
decadentes do mundo inteiro estão ávidos por novidades como esta. Não me
culpem, se aparecer mais essa novidade, pois tenho a esperança (ou talvez a
ilusão) de estar escrevendo para quem não é decadente.
Se você comparar tudo isso com
as roupas do Capricho italiano,
entenderá a extensão deplorável da decadência a que chegamos.
Título, Imagens e Texto: Jacinto Flecha, ABIM,
26-07-2014
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