sábado, 26 de julho de 2014

O "Trombalazanas"

JM Ferreira de Almeida
A memória do Sr. Alípio abriu a torrente de outras lembranças (um acumulado que traz à consciência o tempo que efetivamente passou...). Personagens que as circunstâncias da vida nos colocaram pela frente e que nos marcaram de uma forma ou de outra.

Recordei-me daquele que era conhecido por "Trombalazanas". Funcionário de uma instituição pública que se dedicava a assuntos da lavoura (com então se dizia), era um fervoroso católico e militante de não sei quantos movimentos que se dedicavam ao bem comum. Mas senhor de um feitio terrível, incapaz de um sorriso mesmo quando à sua volta se desatava justificadamente à gargalhada.

A antipatia que gerava a sua permanente arrogância, encontrava, porém, um quase paradoxal paralelo na admiração quase geral que grangeava. Era uma espécie de guardião da moral pública, pois no jornal mais lido por aqueles lados seviciava sem dó nem piedade os que considerava venais, designadamente os que julgava como "escravos da porca da política".

Foram poucos os notáveis de então que escaparam à sua prosa acusatória, brutal como a sua fisionomia, despida de qualquer ironia. Em nome da moral pública julgava tudo e todos. E todos lho consentiam, em especial os visados que não reagiam à violência como seria de esperar (não me lembro de se ter falado num só processo judicial contra ele). Para além disso, nas mesas de café como nas conversas de família, os textos eram motivo de uma geral aprovação, como se naquela comunidade o personagem desempenhasse o papel indispensável de polícia dos costumes e das consciências para que especialmente o credenciava aquele rosto sempre fechado e a total ausência de piedade para com o mais ligeiro pecado ou falha de quem exercia poder.

Até que um dia um sacerdote, homem em tudo desigual do personagem, sabe-se lá porquê resolveu recordar no mesmo jornal responsabilidades públicas já esquecidas que envolviam o técnico agrícola que se apresentava como engenheiro. Sim, da política passada e já esquecida porque a memória coletiva é, de facto, muito volátil. Eram referências a pequenos escândalos, é certo. Mas impróprios de um guardião da ética e da moral pública. Nesse mesmo dia vaporizou-se a superioridade do "Trombalazanas" que passou a ser encarado por ali simplesmente como o trombalazanas que nunca deixaria de ser. Ao ponto de...  não, não conto mais, ou ainda dizem que, como no caso do Sr. Alípio, me estou a inspirar em algum dos trombalazanas da atualidade.
Título e Texto: JM Ferreira de Almeida, “4R – Quarta República”, 26-07-2014

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