José Carlos Bolognese
Eu Sou o Coração de João
João e eu já estamos juntos há
quase setenta anos. Ele é um sujeito comum – emotivo ou controlado conforme seu
estado de espírito e as circunstâncias. Eu sou um cara mais racional; vejo-me
mais como uma bomba hidráulica – na verdade, duas – uma que bombeia sangue para
os pulmões e outra que o devolve ao corpo. João está aposentado, tem lá os seus
problemas circulatórios, pesa mais do que devia e não gosta de ir ao médico.
Ele acha que seus mais de trinta anos de aviação e as inúmeras avaliações
físicas exigidas pela profissão, foram o bastante.
De minha parte, sou grato a
essas checagens periódicas, pois elas alertaram o João para a minha existência –
eu, que sou discreto, mas não gosto de ser ignorado. Era chato para o João
acordar cedo quando não estava trabalhando para ir ao CEMAL fazer aqueles
exames todos, mas eu, que não durmo – só reduzo o meu ritmo de trabalho quando
ele dorme – ia tranquilo, pois sabia que João amava sua profissão e não ia
deixar um problema técnico na sua turbina número 1 – e única – encerrar sua
carreira precocemente.
João agora não precisa mais
sentir a pressão de seus compromissos profissionais para cuidar de mim. Mas,
como tem uma família bacana e bons amigos que se preocupam com ele, continua
fazendo suas consultas médicas um tanto mais espaçadas e fazendo os exames que
lhe são indicados. Eu agradeço. Sua sorte (e minha) é que saiu inteiro da ativa
e conseguiu manter a renda e um plano de saúde. Preocupa-se um pouco, porque
com o correr dos anos, o custo do plano aumenta e ele sabe que a tendência não
é ficar mais barato.
Felizmente, para mim, o João
está nessa faixa de moderados que, se não gosta de médicos, também não é dado a
excessos. Não fuma, bebe só uma cervejinha de vez em quando e chama de
exercício algumas caminhadas que faz e alguns ocasionais consertos domésticos.
Gosta mais de ficar em casa, curtindo uma leitura ou um hobby, mas sempre que
pode dá uma escapadinha com a família, sem saber que isto também contribui para
o meu bom funcionamento.
Sem graves heranças genéticas
e sem grandes sobressaltos, penso que o João e eu podemos emplacar aí… umas
duas décadas ainda!
Eu Sou o Coração de João II
João e eu já estamos juntos há
quase setenta anos. Enquanto ele voava pelo mundo eu fazia circular dentro dele
o seu fluido vital. Durante seus mais de trinta anos de aviação, o que ele
achava mais chato quando não estava trabalhando era acordar cedo, para
revalidar o certificado de capacidade física no CEMAL. Já eu, ia satisfeito,
como um avião que vai para a manutenção para pôr a máquina em dia. Além do que,
acordar cedo, para mim, significa apenas acelerar o meu ritmo, pois eu não paro
nunca.
O João aposentado se livrou do
CEMAL e das pressões da profissão, mas como não se aposentou da vida, continuou
acatando os conselhos da família e dos amigos (do peito) e, enquanto pode,
manteve suas consultas e exames periódicos. Como nunca foi dado a excessos –
sem fumar; bebendo pouco e se divertindo dentro do permitido à sua idade e as
circunstâncias – conseguimos chegar a essa idade.
Durante alguns anos, numa fase
em que João só via avião se olhasse para cima, sua vida foi tranquila e eu já
não sofria com suas noites sem dormir, com os loucos horários, a pressurização,
a microvibração, enfim várias coisas que rimam com aviação. E nada têm de bom.
No chamado “terceiro ato da
vida” (inventamos tantos conceitos sobre a velhice como se fosse possível
enganar o tempo enganando a nós mesmos) também se faz planos para o futuro,
ainda que com mais moderação. João pretendia voltar a estudar, agora sem a
preocupação de transformar conhecimento em salário. Foi nessa altura que ele
descobriu que não podia mais contar com sua renda, que fora estabelecida sobre
fundamentos frágeis de segurança jurídica e ela agora se esvaía pelos meandros
da politicagem rasteira. João, no seu todo, é um time coeso de órgãos que
trabalham segundo normas que, embora até flexíveis, não podem ser desafiadas ao
ponto de ruptura. Ele sempre viveu e trabalhou achando que o mundo no seu
entorno também era assim – ou devia ser. Ao entrar nessa fase, seu mundo virou
de pernas pro ar. A primeira coisa que perdeu foi seu plano de saúde. E eu
ganhei as primeiras batidas fora de compasso. Para ele foi como se o chão
sumisse debaixo dos pés; para mim foi como minhas sístoles e diástoles saíssem
da cadência normal.
Mas assim como eu desenvolvo
vasos periféricos para compensar o desgaste natural, o João, que é conjunto
completo dos órgãos, se vale dessa minha qualidade e de outras que ele tem. Ele
sabe que tem de lutar pelo que é seu, e sabe que seus estados emocionais – e
isto é passado imediatamente para mim – podem ser sua saída ou sua perdição.
Tem dias que sofro intensamente com seus vales de apreensão e seus picos de
ansiedade. Mas... tem dias que ele me recompensa com pensamentos iluminados,
sem nenhum tipo de delírio, apenas reconhecendo que enfrentar dificuldades não
é exclusivo da sua pessoa e, que com toda certeza, outros enfrentam problemas
maiores que os seus.
Em dias assim ele não volta
aos grandes projetos; visualiza o tempo mais imediato, o que cabe nos recursos
que tem. Lê, aprende coisas novas, ouve música, pratica um hobby, conversa,
trabalha... E devaneia um pouco, já que grandes esperas por resultados incertos
são grandes indutoras de transportes espirituais. João se imagina num mundo
mais funcional, longe e ao mesmo tempo aqui mesmo, e para isto se esforça para
perceber as coisas...a vida que coloca em segundo plano quando se demora na
psicosfera das mundanidades passageiras...
![]() |
Desenho: Miichel |
O sol nasce todos os dias, e
se não pode ser visto sempre, a gente está seguro de ele estar lá. A natureza,
mesmo duramente agredida, segue seu protocolo normal e repõe a vida onde lhe é
permitido. E eu, que sou parte dessa natureza, me alimento dos cenários mentais
mais elevados que João consegue visualizar. Fico feliz e bato mais forte quando
ele consegue transcender a realidade mesquinha de malfeitos e malfeitores.
Coexistir com eles não significa dar-lhes o valor que não tem. Como não
estragar um texto ou prejudicar os meus batimentos, deixando eles prá lá sempre
que for possível.
Título e Texto: José Carlos Bolognese, 21-07-2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-