terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Pobreza? Tenham decência, nem sabem do que estão a falar

Gabriel Mithá Ribeiro
Quem teve de viver na miséria, na diferença racial, como eu vivi, ou que se viu forçado a recomeçar do nada sabe o cuidado, o recato, a ponderação exigíveis quando se mexe em dignidades esfrangalhadas

A retórica política transformou a pobreza em artilharia pesada das fraturas ideológicas entre a esquerda e a direita ultrapassando os limites da decência para legitimar a superioridade moral de um dos lados da barricada.

Descendo de famílias pobres e de secular tradição emigrante. Do lado paterno, o católico, a ascendência resulta da miscigenação entre árabes sírios e autóctones moçambicanos. Do lado materno, o islâmico, a ascendência vem de indianos gujarate (de provável ancestralidade paquistanesa) e mestiços de cruzamentos entre originários do Índico e autóctones moçambicanos. 

Depois de viverem noutras cidades, os meus pais fixaram-se no Xipamanine, subúrbio da antiga Lourenço Marques, hoje Maputo, cidade onde nasci. Tive a sorte de crescer na geração que saía da pobreza. Já vivia numa vivenda modesta nos arredores da cidade. Eram tempos em que a família tinha carro, bicicletas racionadas, idas ao cinema, à praia, férias distantes em casa de familiares. Pouco mais. Éramos também dos que não viam os negros no quintal ou a servir porque são família chegada.

O meu pai contava-se entre os simpatizantes da Frelimo, mas, como a família, poucos anos depois da independência rumou a Portugal. Para ele, não eram abstratas as probabilidades de ser vítima da guerra civil (1976-1992). Ia-se angustiando com o cheiro a pólvora, a sangue e a carne humana esturricada espalhados em vagões esburacados a tiro pelos então “bandidos armados”, hoje Renamo. Na época, era obrigado a viajar em comboios onde pagava salários aos trabalhadores do Caminhos de Ferro de Moçambique num percurso que se estendia por cerca de seiscentos quilómetros de mato.

Reproduzindo o fado de antepassados, em inícios dos anos oitenta cheguei a Portugal com a roupa do corpo e a mala de viagem. Entrei num ciclo de pobreza com um fundo de hostilidade em relação aos ‘brancos tugas’ que a vida foi corrigindo, mas que nunca me fez desvalorizar a justiça e dignidade da independência do meu país natal. Depois de ter sido acolhido na Casa dos Rapazes, em Lisboa, acabei por ir viver com a família numa barraca no Vale do Jamor, num meio muito marcado pela africanidade mestiça e negra.
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Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Observador, 17-12-2015 

Um comentário:

  1. Caro Gabriel, permite-me o tratamento por tu. Não é falta de respeito, pelo contrário. As pessoas que mais respeitei foram os meus pais e tratava-os por tu. Temos em comum o facto de termos nascido em Moçambique embora eu fosse um branco filho de funcionário público.

    Devo dizer-te que se estivesses nos EUA serias bem apreciado e valorizado por seres um selfmade-man. Em Portugal só se valoriza famílias tradicionais como os Espírito Santo. Quem trabalha, se esforça, se valoriza e consegue ser bem-sucedido é pouco valorizado.

    Agradeço-te esta crónica porque é um relato de vida que é na primeira pessoa e não uma fantasia literária de burgueses da esquerda caviar com que levamos diariamente. Desejo-te todas as felicidades porque mereces. Um grande abraço.
    Shiri Biri

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