Quem derrotou o Syriza não foi
a pressão da Alemanha, foi o medo que o Syriza tem dos gregos, a quem mentiu e
enganou para ganhar as eleições
Rui Ramos
Já todos sabemos o que
conseguiu o Syriza: em vez da troika, passou a haver “instituições”; em vez do
programa, “acordo”; em vez de credores, “parceiros”; em vez de austeridade,
“condições”. Enfim, a transfiguração semântica servirá para muita coisa, mas
não chega para esconder que o Syriza enganou os gregos, quando, para ganhar as
eleições, prometeu que bastava dar dois berros à Merkel para tudo se tornar
fácil. Agora, como todos os mentirosos, resta-lhe continuar a mentir,
recorrendo ao delírio verbal consentido pelos seus parceiros europeus para inventar
“batalhas ganhas” em guerras perdidas.
Na Grécia, à esquerda e à direita, já muita gente percebeu a
“ilusão” encenada por Tsipras e Varoufakis. Manolis Glezos [foto], o patriarca
do Syriza, com um sentido da decência que os seus correligionários mais novos
não têm, pediu entretanto as devidas desculpas ao povo grego. Há quem diga que ficou tudo
na mesma. Não, tudo ficou muito pior, porque o circo do Syriza deixou a Grécia
mais isolada, mais desacreditada, mais fraca, e mais longe da recuperação
económica. O saldo orçamental primário, por exemplo, já desapareceu. Com inimigos destes, a troika não precisa
de amigos.
No exterior, o clube de fãs do
Syriza vai tentar fingir que este foi apenas mais um caso de prepotência alemã. Não foi nada disso. A Grécia não é um
país ocupado, e não estamos no século XIX. Ninguém iria bombardear Atenas para
forçar o pagamento da dívida, como aconteceu ao Egipto em 1882. Então, por que é
que o Syriza não ousou romper as negociações, renegar a dívida, sair do euro,
afirmar a soberania, e em vez disso se submeteu a um acordo duríssimo? Não foi
por causa da “pressão europeia”, mas porque teve de reconhecer que não existe
na Grécia uma maioria para romper com a União Europeia, o euro, o “capitalismo”
e a “democracia burguesa”, como desejariam os revolucionários da
extrema-esquerda.
Na Europa do sul, os que têm
imediatamente a perder com uma revolução são a maioria, ao contrário do que
acontece, por exemplo, na Venezuela, o país-modelo do Syriza. A hemorragia de dinheiro dos bancos foi um sinal da
pouca inclinação da Grécia para sacrificar as suas poupanças e patrimónios numa
aventura fora da União Europeia (desde o começo da crise, os depósitos em
relação ao PIB já caíram de 131% para 77%). O Syriza cedeu porque teve medo do
que lhe fariam os gregos se por acaso Varoufakis voltasse a casa para anunciar
uma desvalorização de 50% sob a forma de um novo dracma. A alternativa foi
chamar “instituições” à troika.
O truque dos contestatários do
ajustamento e das reformas na Europa do sul tem sido o de fingir que toda a
população está com eles. Não está. É óbvio que ninguém gosta de cortes e pouca
gente está entusiasmada com mudanças. Mas também é óbvio que quase toda a gente
sabe que as alternativas são piores. Os programas de assistência evitaram
bancarrotas e pouparam os vários países a tormentos muito maiores do que os que
infligiram. É por isso que, apesar de todas as dificuldades, a Grécia aguentou
cinco anos de troika, e agora, com o Syriza, preferiu continuar sob as
“instituições” (para usar o novo vocabulário grego).
No passado, ajustamentos do
tipo que a Grécia experimentou deram resultados rapidamente, como sucedeu em
Portugal a partir de 1985. Agora, não. Há quem explique a dificuldade pelo modo
como a zona euro funciona, impedindo desvalorizações e não prevendo
transferências entre países. Com todo o respeito, parece-me que não é bem essa
a questão: transferências há, o que não há é muita vontade de efectuar o
equivalente interno das antigas desvalorizações da moeda, e muito menos ânimo
para sanear e modernizar administrações, ou abrir e flexibilizar mercados. Por
isso, a inflação, com a sua “ilusão monetária”, continua a parecer a muitos
especialistas indispensável para restaurar a competitividade de países como a
Grécia.
O problema da Grécia é que não
deseja voltar à desvalorização e à inflação, mas não conseguiu ainda
organizar-se para existir de outra maneira. A questão é fundamentalmente
política: não há, na classe dirigente, muita gente disponível para se
comprometer num projecto reformista. Em França, Hollande teve de recorrer ao
poder presidencial para fazer passar a lei Macron, de modo a dispensar os deputados socialista de
sujarem as mãos em reformas.
As classes dirigentes
falharam, mas o seu falhanço serviu mais uma vez, no caso da Grécia, para
tornar manifesta a insustentável irrelevância da chamada “esquerda radical”, a
quem a crise emprestou um simulacro de vida. Não há revoluções grátis. Por
isso, no mundo actual, onde não há petróleo, não há revolução. Até o Podemos,
em Espanha, parece não dispensar o dinheiro venezuelano. Sem rendimentos petrolíferos, a
“esquerda radical” não é mais do que retórica, colarinhos abertos, cachecóis –
e mentiras.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
23-2-2015
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