Jacinto Flecha
Os escritores famosos redigem
suas obras para cerca de vinte pessoas, e os de menor alcance escrevem para bem
menos. Esta informação constava em artigo de um literato talentoso e muito
respeitado, que li no século passado. Mas a minha idade, prezado leitor, não
deve ser avaliada com base nesse século passado aí atrás, pois qualquer pessoa
com mais de vinte anos lembra-se do que leu no século passado. Faço também a
ressalva de que não era uma estatística, mas uma estimativa pessoal. Merece
credibilidade, sendo ele do ramo e bom conhecedor dos meios literários.
A estimativa pode parecer
estranha, mas contém dados razoáveis e verossímeis. Em primeiro lugar, porque
nenhum escritor conhece todos os seus leitores. À medida que vai pondo no papel
os fatos, pensamentos, comentários, é também natural ele se perguntar qual
seria a opinião de tal e tal amigo cujas posições conhece, tal grupo de pessoas
com o qual tem afinidades ou discrepâncias. Assim agindo, pode avaliar o que
pensará da obra a média dos seus leitores. E pode prever, por essa amostragem,
se os termos que usa, a construção das frases, os conhecimentos necessários
para entender o conteúdo, tudo corresponde ao adequado para seus leitores.
Qual o meu objetivo com essas
informações? Bem, não mencionei ainda os que escrevem, ou empreendem grandes
esforços, ou produzem algum objeto para agradar a apenas uma pessoa. Existem
sim, e já vou lhe dar exemplos.
No século passado (de novo)
houve um atentado contra a vida do presidente Ronald Reagan, e logo se
constatou o motivo. O autor, mentalmente desequilibrado, queria impressionar
uma única pessoa, atriz de um filme em cartaz. Imagino que no filme ela se
envolvia em algum atentado, e talvez ele tenha procurado demonstrar sua capacidade
para fazer a mesma coisa; em seguida passaria a exibir-se diante dela com
objetivos fáceis de imaginar. Há loucura para tudo…
Outro fato bem antigo (parece
que tudo hoje aponta para o século passado) se refere a uma menina que teve
poliomielite (doença considerada extinta… no século passado). A recuperação
exigia fisioterapia, durante a qual ela reclamava das dores e outros aspectos
desagradáveis. Num dia de choramingos especialmente irritantes, a mãe chamou-a
às falas, em termos como estes:
— Minha filha, estamos fazendo
tudo ao nosso alcance para você voltar a andar como uma pessoa normal. É o que
podemos fazer, mas se não houver cooperação da sua parte, os resultados não
serão esses. Você vai ficar aleijada para toda a vida, não vai conseguir emprego
nem um bom marido. Se você quer ficar assim, basta parar de fazer os
exercícios, mas depois não ponha a culpa em nós.
Resultado: Poucos anos depois,
ela se tornou campeã olímpica de corrida. É fácil imaginar quantos esforços fez
para agradar à mãe. Parece até que exagerou…
O personagem central de um dos
maiores clássicos da literatura mundial dedica todo o tempo dos dois grossos
volumes tentando praticar algum ato heroico a fim de impressionar a dama dos
seus sonhos. Ou melhor, da sua imaginação, onde Dulcineia del Toboso adquire
belezas e virtudes que passaram bem longe da supervalorizada vizinha. Empenhado
em praticar façanhas para impressionar a Dulcineia imaginária, Dom Quixote de
la Mancha se dá mal ao investir contra moinhos de vento, atacar inofensivos
peregrinos que supõe serem malfeitores, atribuir poderes legendários a objetos
corriqueiros. Imagina-se dotado de virtudes sobre-humanas, como as que os
literatos da época atribuíram a seus personagens dos romances de cavalaria.
Quem eram esses grandes heróis
imaginários? Se você conhece Batman, Flash Gordon, Super-homem, Capitão Marvel,
Capitão América, Homem Aranha, Jedi, Príncipe Submarino, Tarzan, ou até o
Capitão Atlas, troque as roupas deles, as armas que usam, os meios de
transporte e mais umas coisinhas, e terá os mirabolantes personagens daqueles
romances. São farinha do mesmo saco. O curioso é que os mesmos admiradores
desses imaginários heróis modernos caem de porrete em cima de cavaleiros
medievais, heróis reais de carne e osso. Por que essa discriminação?
Acontece que a verdadeira
cavalaria medieval era realmente heroica, dedicada a causas nobres. Seus feitos
grandiosos estão consignados na história das Cruzadas e em muitas outras
batalhas decisivas, relegadas hoje a um esquecimento proposital e inexplicável.
Os romances de cavalaria deturparam os feitos desses heróis e aviltaram seu
objetivo real, substituindo-o pela conquista do amor de uma dama. Cervantes,
por meio do seu imaginário Dom Quixote, lançou no ridículo os romances de
cavalaria e seus heróis mirabolantes, levando de roldão a real cavalaria
medieval, cujas lutas heroicas e memoráveis impediram, entre inúmeras
tragédias, a conquista do mundo inteiro pelos muçulmanos. O próprio Cervantes
participou de uma delas.
Hoje não temos mais esses
heróis. Sua imagem negativa, tal como foi falseada por Cervantes, foi o
resultado mais corrosivo e mais permanente, talvez o real objetivo do autor
espanhol. Quem o afirma é um grande escritor, para quem Dom Quixote fez mais
mal à cavalaria medieval, à nobreza e à civilização cristã do que toda a obra
de Voltaire. Não é dizer pouco.
Você vê alguma utilidade
nesses mirabolantes personagens de quadrinhos e filmes? Ontem e hoje, farinha
do mesmo saco, inúteis e prejudiciais.
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