Gabriel Mithá Ribeiro
Quem teve de viver na miséria,
na diferença racial, como eu vivi, ou que se viu forçado a recomeçar do nada
sabe o cuidado, o recato, a ponderação exigíveis quando se mexe em dignidades
esfrangalhadas
A retórica política
transformou a pobreza em artilharia pesada das fraturas ideológicas entre a
esquerda e a direita ultrapassando os limites da decência para legitimar a
superioridade moral de um dos lados da barricada.
Descendo de famílias pobres e
de secular tradição emigrante. Do lado paterno, o católico, a ascendência
resulta da miscigenação entre árabes sírios e autóctones moçambicanos. Do lado
materno, o islâmico, a ascendência vem de indianos gujarate (de provável
ancestralidade paquistanesa) e mestiços de cruzamentos entre originários do
Índico e autóctones moçambicanos.
Depois de viverem noutras cidades, os meus
pais fixaram-se no Xipamanine, subúrbio da antiga Lourenço Marques, hoje
Maputo, cidade onde nasci. Tive a sorte de crescer na geração que saía da
pobreza. Já vivia numa vivenda modesta nos arredores da cidade. Eram tempos em
que a família tinha carro, bicicletas racionadas, idas ao cinema, à praia,
férias distantes em casa de familiares. Pouco mais. Éramos também dos que não
viam os negros no quintal ou a servir porque são família chegada.
O meu pai contava-se entre os
simpatizantes da Frelimo, mas, como a família, poucos anos depois da
independência rumou a Portugal. Para ele, não eram abstratas as probabilidades
de ser vítima da guerra civil (1976-1992). Ia-se angustiando com o cheiro a
pólvora, a sangue e a carne humana esturricada espalhados em vagões esburacados
a tiro pelos então “bandidos armados”, hoje Renamo. Na época, era obrigado a
viajar em comboios onde pagava salários aos trabalhadores do Caminhos de Ferro
de Moçambique num percurso que se estendia por cerca de seiscentos quilómetros
de mato.
Reproduzindo o fado de
antepassados, em inícios dos anos oitenta cheguei a Portugal com a roupa do
corpo e a mala de viagem. Entrei num ciclo de pobreza com um fundo de
hostilidade em relação aos ‘brancos tugas’ que a vida foi corrigindo, mas que
nunca me fez desvalorizar a justiça e dignidade da independência do meu país
natal. Depois de ter sido acolhido na Casa dos Rapazes, em Lisboa, acabei por
ir viver com a família numa barraca no Vale do Jamor, num meio muito marcado
pela africanidade mestiça e negra.
(…)
Título e Texto: Gabriel Mithá
Ribeiro, Observador,
17-12-2015
Caro Gabriel, permite-me o tratamento por tu. Não é falta de respeito, pelo contrário. As pessoas que mais respeitei foram os meus pais e tratava-os por tu. Temos em comum o facto de termos nascido em Moçambique embora eu fosse um branco filho de funcionário público.
ResponderExcluirDevo dizer-te que se estivesses nos EUA serias bem apreciado e valorizado por seres um selfmade-man. Em Portugal só se valoriza famílias tradicionais como os Espírito Santo. Quem trabalha, se esforça, se valoriza e consegue ser bem-sucedido é pouco valorizado.
Agradeço-te esta crónica porque é um relato de vida que é na primeira pessoa e não uma fantasia literária de burgueses da esquerda caviar com que levamos diariamente. Desejo-te todas as felicidades porque mereces. Um grande abraço.
Shiri Biri