E esquisito estava Raymond
quando, no dia seguinte, contou uma não menos esquisita história.
“Pois é, quando vocês sairam eu
fiquei lá sentado. Tudo calmo. Aquele ambiente me lembrava ‘As flores do mal’,
de Baudelaire, e Alan Poe, Gérard de Nerval e outros. Não sei porquê todos têm
medo de cemitério, pô! No entanto, é lugar calmo e tranquilo que convida à
reflexão.
Mortos não ressuscitam, quer
dizer… eu assim pensava até ontem. Por quê? Calma, vocês vão saber.
Bom, eu estava lá sentado
quando ouvi alguém chamar: - Ei, senhor!
Eu me virei e vi um homem
negro, um cara de uns cinquenta anos, vestido de terno. E o cara vinha vindo. E
eu respondi perguntando: - O quê que há?
O cara me inquiriu: - O quê
que o senhor está fazendo aqui?
- Ora, o mesmo que você,
apanhando ar, refletindo…
- Aqui?! É o último lugar para…
reflexões. Puxa! É a primeira vez que eu vejo alguém aqui no cemitério fazendo
outra coisa que não seja acompanhar funeral ou vir trazer flores. E ainda por
cima, de madrugada!
- Pois é, mas eu gosto, não tenho
medo de mortos.
- Tem razão. Eu também não
tenho medo dos mortos aliás…
- Mas você ainda não me disse
o que está fazendo aqui...
- Bem… eu? Eu vivo aqui, sabe?
Eu… sou um morto…
- !? O que você quer dizer?
- O que eu disse, sou um morto.
Ou melhor, sou um ressuscitado. Quer dizer, não, na verdade o que eu sou mesmo
é um morto prevenido.
Aí, gente, eu pensei que o
cara estivesse querendo me tirar. Mas, continuei dando-lhe corda.
- Espera aí, troca em miúdos
essa história.
- Muito bem. Eu vou contar
para o senhor mas, por favor, prometa-me não contar para ninguém. É que eu não
quero ser incomodado e não quero assustar ninguém. Sabe como é que é, você
conta e aí vem uma porção de gente… Prometa-me segredo, por favor.
- Está ok, pode confiar em
mim.
- Ótimo. Pois então, quando eu
era criança escutava falar que os mortos, debaixo da terra, eram comidos pelas
minhocas. Então, depois, quando eu era já adulto eu comecei a pensar em um meio
de evitar essa sina. Já que eu teria que ser enterrado um dia, então, pelo
menos, que ficasse inteiro, não acha? Pois muito bem, a gente adestra cães,
gatos, cavalos, vacas, ursos,leões… enfim, tem uma porção de animais ferozes
que são domesticados, certo?
- Não, espera aí. Você disse
que as minhocas comem os cadáveres, mas ao que me consta, nós somos devorados
por vermes que nascem em nosso próprio corpo. Então eu…
- Não não, tá certo. Mas veja
uma coisa: as minhocas também podem ajudar, não acha?...
- É, já que elas andam debaixo
da terra…
- Pois bem, mas, e o tempo que
esses vermes demoram até nascer, se criar e nos comer? Até lá… tive que pensar noutra saída, não acha?
Pois bem, como eu estava dizendo, então, o jeito seria de evitar que as
minhocas me comessem. Ah, e veja outra coisa: depois de morto a alma sai do
corpo e volta para a nossa aldeia e… vai pra dentro de uma criança. Pois é, a
alma vai embora, sozinha, porque o corpo não pode ir com ela, não é verdade?
Pois bem, então aí eu pensei em domesticar as minhocas. Elas não me comendo, eu
poderia voltar com a minha alma, tudo junto, não acha?
- Acho, acho sim.
- Pois bem, então, eu comecei
a pegar minhocas na terra. Fiz um caixote e fui colocando as minhocas. Botava
mais um pouco de terra a cada vez que eu sentia que o número de minhocas
aumentava.E olhe, eu ia pegando minhoca que não acabava mais. Tratava delas, ia
botando restos de comida, baratas, sei lá. Falava com elas, botava elas na
minha mão. E fui colecionando minhocas… Isso durante anos e anos. Toda a minha
vida..
Pois bem, quando eu estava com
47 anos fui à Prefeitura comunicar o meu testamento, o meu último desejo: que a
terra daquele caixote, com as minhocas dentro, claro, fosse colocada dentro do
meu caixão.
Pois bem, quando eu morri, há
três anos, eu já domesticava minhocas há mais de cinquenta anos. Então, como eu
estava dizendo, quando morri enterraram-me aqui neste cemitério. E as minhocas,
que estavam treinadas e eram minhas amigas, ajudaram-me a sair e aqui estou eu…
- A sair?! Não entendi…
- Não? Vou explicar melhor:
bem, eu fui enterrado juntamente com as minhocas, certo? Pois bem, as minhas
amigas, além de impedirem a aproximação de outras minhocas, começaram a devorar
a tampa do caixão. Depois tragaram toda a terra que estava em cima de mim, eu
saí e recoloquei novamente terra na cova.
- Sei… mesmo assim, como é que
você está aí vivinho da silva?!
- Bom, eu não estou o que se
chama de vivo. Eu não lhe disse que a alma ia-se sozinha porque não tinha corpo
para ir com ela? Então? Eu estou aqui com a minha alma.
- Ah!”
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