Paulo Tunhas
Várias coisas que Donald Trump disse na
tomada de posse, se ditas por outro, seriam aplaudidas. Ditas por ele são o
prenúncio do fim do mundo. O que quer que o homem faça ou diga condena-o à
partida.
Por esta altura, imagino, já
toda a gente está farta de ouvir falar de Donald Trump e dos amigos e inimigos
de Trump. Eu estou. A gota de água foram os comentários, na televisão, ao seu
discurso de tomada de posse (eu vi na TVI, mas, segundo me dizem, o mesmo se
passou nas outras estações). A começar pelo pivô, raras vezes assisti a uma tão
flagrante exibição de parcialidade e má-fé. Várias coisas que Trump disse, se
ditas por outro, seriam aplaudidas. Ditas por ele são o prenúncio do fim do
mundo. O que quer que o homem faça ou diga condena-o à partida. É como naquela
história que se contava nos tempos de George W. Bush. Bush e o Papa passeiam
num barco. Às tantas, uma rajada de vento lança ao rio o chapéu do Papa. Bush
levanta-se, caminha sobre a água, pega no chapéu e volta caminhando até ao
barco, onde entrega o chapéu ao Papa. Título dos jornais no dia seguinte: o
Presidente Bush não sabe nadar. O mesmo se passou na imprensa escrita. Com exceções,
é claro, como vários artigos sérios e informados de Jorge Almeida Fernandes no
Público. Mas Nicolau Santos, no Expresso Curto, não hesitou, no dia da tomada
de posse, em declarar que “iniciamos hoje mesmo a contagem decrescente para a
III Guerra Mundial”. Um profeta, este Nicolau. Levar-se-á mesmo a sério?
Não simpatizo com Trump nem
com a sua retórica, duvido da bondade de várias políticas que anuncia, mas não
vou ceder ao exercício de prudência mundana que consiste em fazer uma listinha
das razões disso para me poder permitir criticar a má-fé e a parcialidade, a subjetividade
que não se reconhece como subjetividade, da atitude dos media em relação a
Trump. Até porque Trump não me interessa aqui particularmente. Interessam-me
duas coisas, e uma muito mais do que outra.
A menos interessante é o facto
de as figuras emblemáticas da crítica a Trump não serem políticos, mas cantores
e atores. Com o devido respeito, até porque gosto de alguns deles, há qualquer
coisa de um pouco infantil nisto. Mas é um padrão bem estabelecido desde há
algum tempo. Há casos, de resto, piores. Uma certa esquerda radical andou
vestida em manifestações de um personagem de histórias aos quadradinhos (hoje
diz-se, pretensiosamente: “novela gráfica”) e, depois, de um filme: V de
Vingança. Voltando aos atores. Claro que o muito dinheiro deles é dinheiro bom
e o de Trump, que por acaso dá dinheiro a outros, é, por definição, péssimo.
Mas os atores, que vivem no elemento da representação, são sempre tomados,
nestas circunstâncias, pelo irreprimível desejo de serem a voz do povo, mesmo
contra alguém que ganha eleições. Uma atitude espontânea, cheia das melhores
intenções? Em parte, certamente, mas só possível por certas características da
nossa sociedade, que adora celebridades e se fascina pelos ricos, jovens e
belos. No fundo, é uma grande inocência que permite a atores e cantores
julgarem-se porta-vozes da humanidade. É o tipo de sociedade em que vivemos (e
não me estou propriamente a queixar) que os conduz a representarem mais este
papel. São mais joguetes do que jogadores. Aquilo que parece arrogância é, mais
profundamente, ingenuidade. Não estou a querer ser irónico.
Muito mais interessante,
creio, é uma outra questão, a da facilidade com que toda a gente, de repente,
se põe a ter muito medo de uma coisa ou outra. Há, é claro, medos muito
razoáveis, como o do terrorismo islâmico. E, privadamente, todos temos vários
medos e medinhos. Não sei se o medo, como diz uma canção de John Cale, é “o
melhor amigo do homem”, mas é, na sua essência, um sentimento muito legítimo, e
até, em várias ocasiões, muito racional. Mas há medos que mais parecem uma
conversa de sociedade do que outra coisa, como a III Guerra Mundial de Nicolau
Santos. Há neles algo de inverídico. Parecem nascer do desejo de afirmar a
pertença a um grupo. São menos reais do que demonstrativos.
Social-demonstrativos, poder-se-ia dizer. São menos a causa do que a
consequência da parcialidade e da intolerância que, de costume, a acompanha.
Confesso que esses medos não
me inspiram grande confiança. Por regra, poluem a atmosfera pública e desviam a
atenção dos verdadeiros problemas. Mais. Normalmente vêm acompanhados de uma
oscilação: um dia teme-se muito, no outro têm-se esperanças desmesuradas. Nem
uma coisa nem outra são normalmente racionais. E o estado de espírito a que
estas oscilações conduzem, e que muita poesia, eminentemente a de Sá de Miranda,
belamente descreveu, não se recomenda por aí além. Acresce que nos medos
social-demonstrativos a isto se junta, como disse antes, a suspeita de uma
insinceridade essencial.
Mas não nos devemos irritar
excessivamente. Afinal de contas, nada disto é novo. Tanto em matérias caseiras
como mundiais, lembro-me de vários surtos de tais medos social-demonstrativos.
Isto ajuda a não levar demasiado a sério a coisa. Sobretudo, é claro, nos seus
detalhes mais insignificantes. É sempre possível, por exemplo, mudar de canal
televisivo. No outro dia saltei dos comentadores da TVI (e do pivô
social-demonstrativo) para um canal desportivo, e não me arrependi. Isto apesar
da linguagem dos especialistas de futebol, talvez sob o efeito do “corte
epistemológico”, como dantes se dizia, operado pelo rigor da busca da “verdade
desportiva” que devemos ao imprescindível Rui Santos, ter perdido os encantos
que dantes a caracterizavam. Já não há jogadores que sejam carregadores de
pianos, codiciosos, pletóricos de energia, dispostos à combatividade peituda,
com grande capacidade de efabulação narrativa no jogo pela cabeça e cheios de
engodo pela baliza. Enfim, é de supor que a natureza humana encontra sempre uma
razão ou outra para a melancolia. O essencial é que ela não aborreça os outros.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador,
26-1-2017
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