quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

O medo demonstrativo

Paulo Tunhas

Várias coisas que Donald Trump disse na tomada de posse, se ditas por outro, seriam aplaudidas. Ditas por ele são o prenúncio do fim do mundo. O que quer que o homem faça ou diga condena-o à partida.

Por esta altura, imagino, já toda a gente está farta de ouvir falar de Donald Trump e dos amigos e inimigos de Trump. Eu estou. A gota de água foram os comentários, na televisão, ao seu discurso de tomada de posse (eu vi na TVI, mas, segundo me dizem, o mesmo se passou nas outras estações). A começar pelo pivô, raras vezes assisti a uma tão flagrante exibição de parcialidade e má-fé. Várias coisas que Trump disse, se ditas por outro, seriam aplaudidas. Ditas por ele são o prenúncio do fim do mundo. O que quer que o homem faça ou diga condena-o à partida. É como naquela história que se contava nos tempos de George W. Bush. Bush e o Papa passeiam num barco. Às tantas, uma rajada de vento lança ao rio o chapéu do Papa. Bush levanta-se, caminha sobre a água, pega no chapéu e volta caminhando até ao barco, onde entrega o chapéu ao Papa. Título dos jornais no dia seguinte: o Presidente Bush não sabe nadar. O mesmo se passou na imprensa escrita. Com exceções, é claro, como vários artigos sérios e informados de Jorge Almeida Fernandes no Público. Mas Nicolau Santos, no Expresso Curto, não hesitou, no dia da tomada de posse, em declarar que “iniciamos hoje mesmo a contagem decrescente para a III Guerra Mundial”. Um profeta, este Nicolau. Levar-se-á mesmo a sério?

Não simpatizo com Trump nem com a sua retórica, duvido da bondade de várias políticas que anuncia, mas não vou ceder ao exercício de prudência mundana que consiste em fazer uma listinha das razões disso para me poder permitir criticar a má-fé e a parcialidade, a subjetividade que não se reconhece como subjetividade, da atitude dos media em relação a Trump. Até porque Trump não me interessa aqui particularmente. Interessam-me duas coisas, e uma muito mais do que outra.

A menos interessante é o facto de as figuras emblemáticas da crítica a Trump não serem políticos, mas cantores e atores. Com o devido respeito, até porque gosto de alguns deles, há qualquer coisa de um pouco infantil nisto. Mas é um padrão bem estabelecido desde há algum tempo. Há casos, de resto, piores. Uma certa esquerda radical andou vestida em manifestações de um personagem de histórias aos quadradinhos (hoje diz-se, pretensiosamente: “novela gráfica”) e, depois, de um filme: V de Vingança. Voltando aos atores. Claro que o muito dinheiro deles é dinheiro bom e o de Trump, que por acaso dá dinheiro a outros, é, por definição, péssimo. Mas os atores, que vivem no elemento da representação, são sempre tomados, nestas circunstâncias, pelo irreprimível desejo de serem a voz do povo, mesmo contra alguém que ganha eleições. Uma atitude espontânea, cheia das melhores intenções? Em parte, certamente, mas só possível por certas características da nossa sociedade, que adora celebridades e se fascina pelos ricos, jovens e belos. No fundo, é uma grande inocência que permite a atores e cantores julgarem-se porta-vozes da humanidade. É o tipo de sociedade em que vivemos (e não me estou propriamente a queixar) que os conduz a representarem mais este papel. São mais joguetes do que jogadores. Aquilo que parece arrogância é, mais profundamente, ingenuidade. Não estou a querer ser irónico.

Muito mais interessante, creio, é uma outra questão, a da facilidade com que toda a gente, de repente, se põe a ter muito medo de uma coisa ou outra. Há, é claro, medos muito razoáveis, como o do terrorismo islâmico. E, privadamente, todos temos vários medos e medinhos. Não sei se o medo, como diz uma canção de John Cale, é “o melhor amigo do homem”, mas é, na sua essência, um sentimento muito legítimo, e até, em várias ocasiões, muito racional. Mas há medos que mais parecem uma conversa de sociedade do que outra coisa, como a III Guerra Mundial de Nicolau Santos. Há neles algo de inverídico. Parecem nascer do desejo de afirmar a pertença a um grupo. São menos reais do que demonstrativos. Social-demonstrativos, poder-se-ia dizer. São menos a causa do que a consequência da parcialidade e da intolerância que, de costume, a acompanha.

Confesso que esses medos não me inspiram grande confiança. Por regra, poluem a atmosfera pública e desviam a atenção dos verdadeiros problemas. Mais. Normalmente vêm acompanhados de uma oscilação: um dia teme-se muito, no outro têm-se esperanças desmesuradas. Nem uma coisa nem outra são normalmente racionais. E o estado de espírito a que estas oscilações conduzem, e que muita poesia, eminentemente a de Sá de Miranda, belamente descreveu, não se recomenda por aí além. Acresce que nos medos social-demonstrativos a isto se junta, como disse antes, a suspeita de uma insinceridade essencial.

Mas não nos devemos irritar excessivamente. Afinal de contas, nada disto é novo. Tanto em matérias caseiras como mundiais, lembro-me de vários surtos de tais medos social-demonstrativos. Isto ajuda a não levar demasiado a sério a coisa. Sobretudo, é claro, nos seus detalhes mais insignificantes. É sempre possível, por exemplo, mudar de canal televisivo. No outro dia saltei dos comentadores da TVI (e do pivô social-demonstrativo) para um canal desportivo, e não me arrependi. Isto apesar da linguagem dos especialistas de futebol, talvez sob o efeito do “corte epistemológico”, como dantes se dizia, operado pelo rigor da busca da “verdade desportiva” que devemos ao imprescindível Rui Santos, ter perdido os encantos que dantes a caracterizavam. Já não há jogadores que sejam carregadores de pianos, codiciosos, pletóricos de energia, dispostos à combatividade peituda, com grande capacidade de efabulação narrativa no jogo pela cabeça e cheios de engodo pela baliza. Enfim, é de supor que a natureza humana encontra sempre uma razão ou outra para a melancolia. O essencial é que ela não aborreça os outros.
Título e Texto: Paulo Tunhas, Observador, 26-1-2017

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