Gabriel Mithá Ribeiro
António Costa faz parte da pertença racial
que os moçambicanos bem conhecem e que designam de forma depreciativa por
‘caneco’. Entre os oriundos do Índico 'monhé' sou eu por ter ascendentes
islâmicos.
«Se vires um ‘monhé’ e uma
cobra, mata o ‘monhé’ e deixa a cobra”, dizem os meus conterrâneos
moçambicanos. Isto não é racismo porque, como já escrevi neste jornal, o
racismo deixou de existir. Apenas a psico pandemia que tomou conta da espécie
admite o contrário.
Imagine-se uma frágil bola de
cristal colocado no topo de uma pirâmide sólida. Se a última se desmoronar, os
cacos do cristal nunca mais voltarão a ser a antiga bola, perderão sentido e
significado. É o que aconteceu com o racismo. O contexto histórico que o sustentava
não existe mais. Desmoronou-se a discriminação racial formalmente instituída
nos Estados Unidos da América, o nazismo, a colonização europeia, a guerra
fria, o apartheid na África do Sul, entre outros. O racismo estatelou-se e
muitos continuam a ter visões de uma bola suspensa no ar, intacta, brilhante,
exemplo mais-que-perfeito de uma socio-neurose.
Basta ainda saber que hoje
existem milionários de todas as raças e feitios, portanto o substrato
socioeconômico do racismo também desapareceu. Além disso, é bem mais fácil um
negro ou mestiço do bairro da Jamaica, no Seixal, ou de qualquer outro bairro
ver um estado ocidental proteger os seus direitos legais do que um indivíduo
branco numa qualquer sociedade da África atual, e por razões bem mais intimidatórias,
graves ou violentas. Se alguém acredita que ainda existe muito racismo por
resolver é bom que procure fora das sociedades maioritariamente brancas. Terá
muito por onde se entreter.
Ver uma sociedade inteira a
discutir o racismo a propósito de uma intervenção da polícia, e
sobretudo ver gente adulta e responsável propor curas imaginárias para um mal
que não existe faz com que a atual sociedade portuguesa não se distinga, na
matéria, de um qualquer manicômio. Claro que não me refiro aos que se indignam
com o absurdo ou o ridículo da situação. Só falta apelar à intervenção da ONU e
da Santa Sé.
Como se não bastasse, há ainda
a ladainha da violência policial. Na utopia de vitimização das minorias
oprimidas de matriz soviética que parasitou a civilização ocidental por via das
esquerdas, a culpa está sempre naqueles que nunca podem desempenhar o papel de
vítimas, pela cor de pele e agravada em certos grupos socioprofissionais, com
destaque para os policiais.
Estes podem ser
desrespeitados, desautorizados, agredidos, humilhados, afetados por
frustrações, depressões e suicídios, porém ainda lhes sobra espaço para serem
sempre culpabilizados. À falta de melhor acusa-se do uso excessivo da força.
Até dá a ideia de que lidam com anjos, não com seres humanos que têm sempre os
instintos primários à flor da pele.
As mesmas elites acadêmicas,
intelectuais, políticas ou artísticas incapazes de domesticar os instintos
primários da espécie, civilizando-a, no conforto das instituições que
controlam, em especial nas salas de aula onde, por sinal, fizeram proliferar o
pior da anomia social (má educação, indisciplina, preguiça ou mesmo violência),
numa espécie de ginástica esquizofrênica exigem que, na hora e em
situações de risco, os agentes da polícia cumpram o papel romântico de sublimar
os instintos primários da espécie investindo a própria pele no amor
incondicional ao próximo. E exigem isso justamente no momento em que os
instintos selvagens andam à solta no espaço público e as salas de aula pouco ou
nada fizeram para domesticá-los ao longo de anos.
Nas escolas, os progressistas
que as controlam (antirracistas e demais variantes) nunca permitiram que se
fizessem investimentos sérios para promover valores sociais fundamentais como a
ordem, o respeito, a família, a autoridade, as hierarquias institucionais. Pelo
contrário, a ideologia educativa instiga a toda a hora o justicialismo, a
revolta social, a luta social. Depois, exigem a professores e polícias que
sejam cordeiros de ideólogos esquerdistas loucos que, em Portugal, ora tomam
conta dos governos, ora condicionam-nos sem hesitações num país onde não existe
direita.
Não é por acaso que a geração
de imigração problemática não é a primeira, mas a segunda e seguintes,
justamente aquelas cuja socialização primária passa ser feita nas escolas
ocidentais progressistas.
O concelho do Seixal onde vivi
e trabalhei por muitos anos é um exemplo. Conheço até relativamente bem o
percurso étnico da Quinta da Princesa, na Amora, pois vivi mesmo ao lado. As
primeiras vítimas dos ideais de vitimização impostos às minorias identitárias
nas nossas escolas de mil e uma maneiras (programas, conteúdos, pedagogias,
atividades, teatros, palestras, concursos, etc.) são as suas respetivas
famílias, depois os seus bairros, agora caminha-se para a fase seguinte. Não é
por acaso que o rap – um tipo de abordagem social que nada tem de nobre ou
inteligente – é filho da escolarização da minoria negra. Portanto, a nossas
salas de aula tornaram-se atentados às mais elementares ideias de civilização.
A cereja no topo do bolo foi a
referência do primeiro-ministro, António Costa, à sua cor de pele passando-se
para o lado dos oprimidos. Aconteceu no último debate quinzenal no parlamento.
Não há paciência para este nível de indigência cívica, mental ou moral.
António Costa faz parte da
pertença racial que os moçambicanos bem conhecem e que designam de forma
depreciativa por ‘caneco’. Entre os oriundos do Índico para a antiga
colónia portuguesa na África Oriental, monhé sou eu por ter ascendentes
islâmicos. Há ainda os ‘baneanes’ hindus cujo espírito de seita sempre
os levou a irem buscar a noiva à terra de origem, à Índia, tal como os
africanos que preferiam uniões matrimoniais no seio da própria etnia e, também
por isso, os africanos não os viam como modernizadores.
‘Caneco’ é o termo que,
em Moçambique, designa os católicos com origem na antiga Índia Portuguesa,
tomados como mestiços num contexto esmagadoramente negro, porém puros
na sua origem identitária indiana. Constituindo uma minoria étnico-racial
não europeia, contudo no tempo colonial o seu estatuto social colocava-os mais
próximos dos então brancos de primeira, ambos distintos dos brancos de
classe baixa. Os últimos, por seu lado, estariam mais próximos dos negros
moçambicanos no quotidiano, enquanto os primeiros, os ‘canecos’, com
maior facilidade se posicionavam nos círculos da elite social e administrativa
dos brancos de primeira.
O contexto colonial
moçambicano permite compreender como um indivíduo da pertença étnica do
primeiro-ministro, António Costa, para mais partilhando também a ascendência
branca, com facilidade faça parte das elites portuguesas e, com isso, alcance
cargos políticos de primeira importância. Em si, o percurso de António Costa
nada explica sobre a abertura racial da esquerda branca portuguesa, bem pelo
contrário quando se trata de ‘canecos’, como os moçambicanos sabem.
Não é por acaso que a seguir à
independência de Moçambique, enquanto uma parte dos ‘canecos’ se
integrou e liderou a FRELIMO num caminho de ruptura fratricida no interior do
grupo dos muito portugueses, uma outra parte teve de vir para Portugal.
Aqui se transformou na minoria étnica ou racial que não teve problemas de
integração social. Mais, que não teve problemas de integração nas elites
portuguesas. De todos as minorias étnicas ou raciais, a mais representada nos
cargos políticos, acadêmicos ou empresariais de relevo num país como Portugal é
a dos ‘canecos’. Para mim, é mais estranho que sejam de esquerda
(caviar) do que da direita da direita, como Narana Coissoró. A razão é
simples. Foram ocidentalizados desde o século XVI e, em termos de preparação
social, técnica ou acadêmica herdada dos seus antepassados europeizados estavam
mais do que preparados para serem brancos de primeira onde quer que
vivessem.
Portanto, ver o
primeiro-ministro, António Costa, insinuar o que quer que seja de vitimização
racial está para lá do absurdo.
De resto, quando realizei um
trabalho de campo sobre relações raciais nas cidades de Maputo e Matola, entre
os anos de 2010 e 2011, quanto mais descia na hierarquia social negra, quanto
mais me afastava da cidade de cimento e dos empregos formais melhor remunerados
e, em sentido contrário, quanto mais me aproximava da terra batida, dos bairros
de alvenaria precária ou de caniço onde vive a esmagadora maioria da
população pobre, mais a representação do branco na sociedade negra
moçambicana mudava de sentido. Passava de uma tendência desfavorável entre as
atuais elites negras (racista) para uma tendência favorável entre a
esmagadora maioria negra desfavorecida.
A última tende a representar o
branco de hoje como (muito) diferente do branco do tempo colonial (até
1974-1975) com, entre outros, os argumentos de os brancos e brancas da
atualidade casarem com negras e negros, criarem postos de trabalho valorizados
(mais não seja empregos domésticos), promoverem pensamentos e práticas
valorizados (conhecimentos acadêmicos e de senso comum ligados, por exemplo, ao
vestuário, hábitos de vida, maneiras de falar, valores, cumprimento do que se
promete, entre outros) e por se distanciarem de comportamentos disruptivos. Os
últimos, por seu lado, tornavam-se salientes quando os discursos do senso comum
negros incidiam nas suas elites negras sobretudo quando associadas a indianos
(em particular monhés), ligação com maior frequência relacionada com
práticas como a corrupção e a criminalidade.
No caso da minoria indiana
no seu conjunto (monhés, canecos ou baneanes), este
segmento revelou-se a que mais se aproxima do rótulo de racista entre os
negros suburbanos moçambicanos. Se o primeiro-ministro ‘caneco’, António
Costa, e a líder branca do CDS-PP, Assunção Cristas, fossem moçambicanos
aos olhos dos negros comuns o primeiro teria um fardo racista mais
pesado do que a última. Não continue a fazer-nos de parvos, senhor António
Costa.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Observador, 26-1-2019
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